quarta-feira , 20 novembro , 2024

Crítica| O Beijo no Asfalto – Murilo Benício ousa e adapta Nelson Rodrigues

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Uma peça de teatro encomendada pela Companhia Fernanda Montenegro para ser encenada pela atriz e sua trupe. O autor era ninguém menos que Nelson Rodrigues. O tema? Um beijo no asfalto. Um simples beijo, que, em 1961, gerou polêmica, e hoje chega aos cinemas mais atual do que nunca.

O sinal fecha na Praça da Bandeira, no bairro da Tijuca, Rio de Janeiro. As pessoas atravessam a rua. Um rapaz esbarra no outro e se vira para trás. No que ele está olhando, um ônibus avança o sinal e o atinge em cheio. As pessoas cercam o local, curiosas. Um desconhecido se aproxima e segura a cabeça do atropelado. E, para a surpresa de todos, simplesmente o beija. Na boca.



Com um argumento simples, Nelson Rodrigues faz uso de uma única cena para, através dela, questionar os tais valores da tradicional família brasileira. O beijo que vira um escândalo. Dois homens que se beijam em público, na hora do almoço, em pleno dia de trabalho. Se conheciam? Eram amantes? Por que o beijara? A partir de um simples beijo, uma engenhosa rede de fofocas é criada pela equipe de policiais que decidem investigar o caso (motivados simplesmente pelo potencial de holofote que o acontecimento possuía) e por jornalistas abutres, que inventam notícias click baits tão somente para estimular a compra de jornais, sem se importarem com a veracidade dos fatos ou com o quanto tais notícias podem afetar a vida dos envolvidos.

Através de uma simples cena, Nelson Rodrigues trabalha o fake news, a difamação, o racismo, a homofobia, a cobiça, a inveja, a mentira, a pureza, o quanto a inocência dos bons acaba sendo esmagada pela ganância de quem tem o poder. Tudo isso conduz uma história que nem deveria virar história, mas que, por conta dos acontecimentos e dos valores da sociedade, deve ser debatida, e é realizada de forma a deixar o espectador cada vez mais nervoso pelo fim iminente.

Parece tanto com o que vemos diariamente nos noticiários, não é? Pois bem, foi por conta da relevância temática que o ator Murilo Benício decidiu comprar os direitos de adaptação da peça, pouco antes dos anos 2000. Dezoito anos depois, finalmente o filme estreia nos cinemas, e ainda bem que levou todo esse tempo. Murilo faz uma direção primorosa e ousada da peça, não só adaptando-a ao cinema, mas literalmente transportando-a para as telonas.

Ou seja, não é um filme, é uma peça filmada, porém, interpretada e, ao mesmo tempo, ensaiada, pois nós vemos os bastidores da gravação, os ensaios dos atores, a leitura em grupo. Aliás, essa é a melhor parte, pois acompanhamos, em primeira mão, como de fato os atores são direcionados a perceber seus personagens e concebê-los de acordo com suas características psicológicas. Para os amantes e estudiosos de cinema e dramaturgia, essas cenas são um prato cheio a ser degustado.

Mas a audácia de Benício não para por aí. O filme é todo em preto e branco, o que proporciona a imersão temporal da trama, embora, enquanto espectador, você seja capaz de identificar que o que você está vendo na telona não é diferente do que vemos acontecer do lado de fora do cinema.

E o elenco? Digamos apenas que é composto por Lázaro Ramos (Arandir, o protagonista), e Débora Falabella (Selminha), acompanhados por Stênio Garcia (Aprígio), Otávio Müller (Amado), Augusto Madeira, Marcelo Flores e Fernanda Montenegro. Sem contar a fotografia poética de Walter Carvalho. Vou só jogar esses nomes aqui para vocês tirarem as próprias conclusões.

Uma estreia primorosa de Murilo Benício na direção, trazendo novo vigor ao cinema nacional. Desses filmes belos, atemporais e que enchem nossos olhos de encanto e nosso peito de orgulho, em ver o quanto nosso cinema tem potencial para fazer coisas bonitas e bem feitas. Imperdível!

 

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Janda Montenegrohttp://cinepop.com.br
Escritora, autora de 6 livros, roteirista, assistente de direção. Doutora em Literatura Brasileira Indígena UFRJ.

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O sinal fecha na Praça da Bandeira, no bairro da Tijuca, Rio de Janeiro. As pessoas atravessam a rua. Um rapaz esbarra no outro e se vira para trás. No que ele está olhando, um ônibus avança o sinal e o atinge em cheio. As pessoas cercam o local, curiosas. Um desconhecido se aproxima e segura a cabeça do atropelado. E, para a surpresa de todos, simplesmente o beija. Na boca.

Com um argumento simples, Nelson Rodrigues faz uso de uma única cena para, através dela, questionar os tais valores da tradicional família brasileira. O beijo que vira um escândalo. Dois homens que se beijam em público, na hora do almoço, em pleno dia de trabalho. Se conheciam? Eram amantes? Por que o beijara? A partir de um simples beijo, uma engenhosa rede de fofocas é criada pela equipe de policiais que decidem investigar o caso (motivados simplesmente pelo potencial de holofote que o acontecimento possuía) e por jornalistas abutres, que inventam notícias click baits tão somente para estimular a compra de jornais, sem se importarem com a veracidade dos fatos ou com o quanto tais notícias podem afetar a vida dos envolvidos.

Através de uma simples cena, Nelson Rodrigues trabalha o fake news, a difamação, o racismo, a homofobia, a cobiça, a inveja, a mentira, a pureza, o quanto a inocência dos bons acaba sendo esmagada pela ganância de quem tem o poder. Tudo isso conduz uma história que nem deveria virar história, mas que, por conta dos acontecimentos e dos valores da sociedade, deve ser debatida, e é realizada de forma a deixar o espectador cada vez mais nervoso pelo fim iminente.

Parece tanto com o que vemos diariamente nos noticiários, não é? Pois bem, foi por conta da relevância temática que o ator Murilo Benício decidiu comprar os direitos de adaptação da peça, pouco antes dos anos 2000. Dezoito anos depois, finalmente o filme estreia nos cinemas, e ainda bem que levou todo esse tempo. Murilo faz uma direção primorosa e ousada da peça, não só adaptando-a ao cinema, mas literalmente transportando-a para as telonas.

Ou seja, não é um filme, é uma peça filmada, porém, interpretada e, ao mesmo tempo, ensaiada, pois nós vemos os bastidores da gravação, os ensaios dos atores, a leitura em grupo. Aliás, essa é a melhor parte, pois acompanhamos, em primeira mão, como de fato os atores são direcionados a perceber seus personagens e concebê-los de acordo com suas características psicológicas. Para os amantes e estudiosos de cinema e dramaturgia, essas cenas são um prato cheio a ser degustado.

Mas a audácia de Benício não para por aí. O filme é todo em preto e branco, o que proporciona a imersão temporal da trama, embora, enquanto espectador, você seja capaz de identificar que o que você está vendo na telona não é diferente do que vemos acontecer do lado de fora do cinema.

E o elenco? Digamos apenas que é composto por Lázaro Ramos (Arandir, o protagonista), e Débora Falabella (Selminha), acompanhados por Stênio Garcia (Aprígio), Otávio Müller (Amado), Augusto Madeira, Marcelo Flores e Fernanda Montenegro. Sem contar a fotografia poética de Walter Carvalho. Vou só jogar esses nomes aqui para vocês tirarem as próprias conclusões.

Uma estreia primorosa de Murilo Benício na direção, trazendo novo vigor ao cinema nacional. Desses filmes belos, atemporais e que enchem nossos olhos de encanto e nosso peito de orgulho, em ver o quanto nosso cinema tem potencial para fazer coisas bonitas e bem feitas. Imperdível!

 

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