Mistura Indigesta
Existem certos filmes que podem ser considerados esquizofrênicos. São filmes com problemas de personalidade, que não sabem muito bem o que são ou desejam ser. O Contador, novo trabalho do ator Ben Affleck, recai exatamente no quesito, não se decidindo se será um thriller, um filme de ação, uma comédia, um drama, um romance ou até mesmo um filme de super-herói. De fato, ele bem que poderia ser tudo isso e o resultado ser satisfatório, mas o que ocorre são mudanças tão bruscas de tom e tremenda falta de focalização, que ficamos sem entender sobre o que o filme deseja realmente falar. O resultado fica com gosto de salada de frutas passada.
Na trama, Ben Affleck interpreta Christian Wolff, o contador do título. Autista funcional, o protagonista é o sujeito tipicamente metódico, com o estilo de vida menos atraente possível. Ou será? Wolff na verdade tem uma identidade secreta trabalhando para cartéis, mafiosos e todo tipo de criminoso, assim garantindo uma boa situação financeira para si, e despertando a atenção de agentes federais, que começam a investigar quem é este misterioso personagem associado a nomes fora da lei. J. K. Simmons (Oscarizado recentemente por Whiplash – Em Busca da Perfeição) e Cynthia Addai-Robinson – a melhor coisa do filme – personificam a dupla de oficiais no encalço do meticuloso contraventor. E o filme iria bem se centrasse e desenvolvesse no tema da busca dos policiais por este astuto homem de duas faces.
O problema é que O Contador ainda deseja ter mais o que dizer, e uma segunda vida secreta do protagonista é acrescentada à mistura. Nela, Wolff é basicamente um super-herói, treinado desde a infância pelo pai, ao lado do irmão, após o abandono da mãe, o jovem autista é uma mistura Batman e Demolidor, usando sua deficiência para combater malfeitores – mesmo quando ainda garoto. As cenas de abuso infantil não fazem muito sentido e chocam por pura diversão. O pai insiste para que os irmãos briguem na rua com valentões, por exemplo, e os massacrem. É de um mau gosto tremendo. Nesta segunda vida secreta, o personagem de Affleck treina tiros, e dizima criminosos a torto e a direito.
Calma, se você acha que o estoque de subtramas de O Contador acabou por aí, está enganado. O filme ainda encaixa um romance entre Affleck e a personagem de Anna Kendrick (o alívio cômico); a descoberta de falcatruas na empresa de próteses de membros do personagem de John Lithgow, realizada pelo protagonista, contratado para avaliar seus números; e um misterioso grupo de assassinos profissionais, tão eficientes quanto “o contador”, liderados pelo ótimo Jon Bernthal (O Justiceiro da 2ª Temporada de Demolidor) – e você ganha um doce se descobrir quem seu personagem irá revelar ser ao final.
Tudo isso não seria problema se o roteiro trabalhasse tais elementos de forma harmoniosa, no entanto, na maneira em que é finalizado soa como trechos soltos de outros filmes, costurados juntos, e não como algo pertencente à mesma narrativa. Para ter uma ideia, Simmons e Addai-Robinson sequer chegam a contracenar com o resto do elenco, vivendo em um universo paralelo.
O diretor Gavin O´Connor (do ótimo Guerreiro, com Tom Hardy e Joel Edgerton) faz o que pode para segurar as rédeas desta bagunça e realiza um serviço eficiente no comando da obra. Este ano, O´Connor lançou também o faroeste problemático Em Busca de Justiça (Jane Got a Gun), produzido e protagonizado por Natalie Portman, projeto no qual entrou aos quarenta e cinco do segundo tempo, substituindo a cineasta Lynne Ramsay (Precisamos Falar Sobre o Kevin), quando esta abandonou a produção no primeiro dia de filmagem. Em Busca de Justiça passou em branco e chegou em vídeo ao Brasil.
O problema de O Contador, no entanto, é definitivamente o roteiro de Bill Dubuque. E quando fui procurar a filmografia do sujeito, me deparei com O Juiz (2014) – com Robert Downey Jr., exibido no Festival do Rio 2014 – seu único trabalho significativo, o qual possui graves problemas estruturais muito semelhantes aos do novo trabalho. O Juiz e O Contador, ambos da Warner, são donos de sérios problemas de tonalidade, momentos desconexos e situações que não chegam a lugar algum. São filmes esquizofrênicos, cujo diagnóstico é a “caneta” de Dubuque e o tratamento é evitar o roteirista. Isto é, até que os sintomas, ou deficiências narrativas, sejam remediados.