Como um organismo vivo que se reproduz constantemente, a corrupção é no Brasil quase inerente à sua história. Enraizada desde os primórdios da nossa nação, ela funciona como um modus operandi em tudo, do macro ao micro, do grande ao pequeno. Dos “imperceptíveis” e “inofensivos” atos aos enormes rombos nas contas públicas, a sagacidade desse jeitinho brasileiro está incrustada em tudo. E falar sobre o assunto é sempre polêmico. Seja suavizando com uma colher de sutileza ou pegando pesado com apontamentos expressos, não é fácil trazer a temática para uma roda de conversas. E quando a indústria do entretenimento decide projetar esse enorme desconforto de forma escalonada – para mais de 120 países, como é este caso com a Netflix, é como se um enorme elefante branco tivesse adentrado à sala. Foi assim com o primeiro ano de O Mecanismo e pode ser novamente em 2019, com sua segunda temporada. Mas verdade seja dita: precisamos falar abertamente sobre a corrupção.
E José Padilha não mediu esforços, tão pouco se conteve diante do conteúdo gráfico que possui em mãos. Como alguém que tem pressa em passar o seu recado e desmistificar as alegações antigas de que a série traria apenas um lado, ele inaugura o novo ciclo com uma inesperada nova abertura. Trazendo aquele delicioso hino chiclete feito nos anos 70 pelo grupo Originais do Samba, chamado ‘Se Gritar Pega Ladrão’, fica mais do que claro que não há uma sigla partidária a ser poupada. E correndo o risco de gerar um enorme frenesi no público, a introdução é um soco na boca do estômago e traz imagens de gente como Dilma, Lula, Aécio Neves, Eduardo Cunha, Antonio Palocci, Marcelo Odebrecht, Michel Temer, Fernando Henrique Cardoso e muito mais, entre a lista de personas non gratas do hall político nacional.
Ao som da melodia envolvente, cenas reais se mesclam à adaptação em si e fazem dessa abertura uma surpresa maravilhosa. Bem editada e com um viés jornalístico, a intro tem uma estética atraente aos olhos, é cheia de confrontos e já se consolida como uma das melhores coisas de toda a série. E com esse discurso inaugural desconfortável, porém necessário, a série nacional da Netflix inicia uma nova jornada, traz novos nomes ao mecanismo e monta uma sucessão de casa de cartas (literalmente), traçando a rota do crime do colarinho branco no país. E cruzando as fronteiras de filiações partidárias ou apego às certas figuras políticas, a produção cutuca essa ferida aberta que rachou o Brasil ao meio, separando amigos e familiares por ideologias que nunca estiveram tão frágeis como hoje.
Um dos aspectos mais bem explorados na segunda temporada de O Mecanismo é justamente a falta de partido quando se trata de corrupção no setor público. Ao contrário de nós, meros civis, a arquitetura desse tipo de crime não se atém à sua bandeira, seja ela de qual cor for. Ainda que se esconda nela, o jogo político funciona de maneira universal e comunitária, segregando apenas quando convém e quando a opinião pública ganha voz e começa a ponderar seus anseios (vide o impeachment da ex-presidente). Mostrando também o lado delicado de quem se vê entre a cruz e a espada, a produção faz desse período caótico vivido nos últimos anos como um gatilho para explorar a psique humana de seus personagens. Subitamente, somos envoltos nos complexos e origens dos protagonistas, que transparecem uma fragilidade genuína diante da audiência.
E é na essência da atuação dos protagonistas que a série vai se desdobrando, unindo a ficção com o verídico de maneira bem uniforme e equilibrada. Colocando em destaque os atores Caroline Abras e Jonathan Haagensen, O Mecanismo aborda os conflitos morais e éticos de dois policiais que anseiam pela justiça, mas digladiam com sua própria formação familiar e seus princípios particulares. E fazendo de Verena a heroína da vida real, que transita entre a dor da perda, a vida pessoal e profissional com bravura, a série original da Netflix ganha pontos por explorar os anseios de uma mulher de forma autêntica, sempre destacando os sacrifícios que ela teve que fazer para tentar viver a vida que planejou para si.
Com episódios dinâmicos que dão destaque a vários arcos de maneira simultânea, O Mecanismo sabe usar o seu tempo de tela com destreza, explora muito bem a quase doentia relação entre Roberto Ibrahim (Enrique Díaz) e Marco Ruffo (Selton Mello) e nos apresenta ao sociopata Ricardo Brecht, vivido brilhantemente por Emílio Orciollo Netto. Divertida e envolvente, a nova temporada abre as comportas da corrupção e já anuncia uma nova carta desse gigantesco e inesgotável baralho.