Lúcia Murat é uma diretora e roteirista que, em sua trajetória no cinema, quase sempre abordou o tempo da ditadura militar brasileira como cenário de boa parte de seus filmes. Tendo a própria diretora sido presa pelos militares na época, aos poucos, em seus filmes, a diretora vai tecendo episódios e temáticas que costuram uma cortina que busca trazer um panorama para o espectador do que teria sido a vivência de alguém naquela época, fosse de que lado fosse. Se em boa parte dos filmes o olhar sempre foi sobre o cidadão comum que sofre nas mãos dos militares (como abordado no documentário ‘Que Bom Te Ver Viva!’, de 1989), dessa vez a diretora oferece um olhar diferenciado sobre os algozes, no filme de ficção ‘O Mensageiro’, que chega essa semana aos cinemas brasileiros.
Vera (Valentina Herszage, do inédito ‘As Polacas’) é uma jovem que acaba de ser presa pelos militares, trancafiada em uma cela minúscula em algum quartel em algum lugar do Brasil. Ela passa os dias sendo machucada e ignorada pelos militares. Em paralelo, sua mãe, Maria (Georgette Fadel) não mede esforços e visita cada estabelecimento dos militares em busca de notícias de sua filha, enquanto Henrique (Floriano Peixoto), o pai da jovem, tenta seguir sua vida normalmente. Isolada de tudo e de todos, aos poucos Vera conquista a simpatia de Armando (Shi Menegat), um soldado inocente que começa a desconfiar das ordens que recebe de seus superiores. Nesse ambiente hostil, uma inesperada relação de pseudo-amizade surge entre eles.
Grandíssimo vencedor do Festival Internacional de Cinema de Paraty (tendo levado oito prêmios para casa, incluindo Melhor Filme, Melhor Ator, Melhor Direção e Melhor Roteiro), ‘O Mensageiro’ é um filme que, curiosamente, aposta no diálogo como principal ferramenta para construir um enredo de época que parte de elementos reais que se fundem dentro da ficção proposta pelo filme.
Escrito pela própria diretora Lúcia Murat com Tunico Amâncio, o roteiro surpreende em focar o protagonismo da trama no soldado, e não na jovem estudante. Se de certa forma isso traz certa novidade às abordagens sobre o período da ditadura militar, por outro causa estranhamento, afinal, mesmo não intencionalmente, ao construir um soldado inocente e crédulo que é inserido num sistema cruel ao qual não escolheu e no qual é apenas uma peça, o filme faz uma escolha ousada e humaniza o algoz, oferecendo um olhar mais suavizado sobre essas figuras que causaram tanta dor à tantas famílias. Talvez o público não receba muito bem essa mudança de olhar.
Escolhas à parte, ‘O Mensageiro’ é um filme bem-produzido, especialmente no quesito de reprodução de arte para reconstruir uma época, com dedicação ao figurino, à estética e aos objetos de cena. Desse conjunto, destaca-se a atuação de Shi Menegat, com muitos closes que favorecem a construção da empatia no espectador a esse jovem soldado que, de tão ingênuo, parece perdido naquele ambiente duro e violento da ditadura. Destaca-se, também, a aparição da própria diretora ao final do longa, em uma cena como professora de história, em que conversa indiretamente com o público abrindo o caminho para o debate – e o diálogo – entre agredidos e agressores.
Corajoso e diferente, ‘O Mensageiro’ é um filme de drama que flerta com o documental, propondo um diálogo improvável dentro de um dos períodos mais doloridos da história contemporânea do Brasil.