Vez ou outra surge um projeto tão absurdo que chega a ser difícil acreditar que recebeu sinal verde do estúdio. Alguns comentários maldosos brincam dizendo que foi culpa de dívida de jogo ou que o diretor sabe de algum segredo muito cabuloso da galera endinheirada. E convenhamos, alguns desses filmes são tão ruins que fica até difícil pensar algo diferente disso. Só que esse não é o caso de O Urso do Pó Branco. Por incrível que pareça. Confesso que quando ouvi falar pela primeira vez que estavam fazendo um filme sobre um urso movimento à base de cocaína e puro ódio, soltei um riso pensando em uma pataquada ao estilo Sharknado, que é propositalmente zoado e conseguiu uma fanbase sólida com isso. No entanto, nosso querido Ursinho Pó traz uma inspiração nos filmes de terror dos anos 80 e 90, que eram lançados diretamente na TV ou em VHS e eventualmente se tornaram clássicos Cult. Mas aqui, neste caso, o estúdio resolveu apostar com um orçamento um pouco maior, deixando à disposição da promissora Elizabeth Banks nada menos que 35 milhões de dólares para a execução desse filme.
Para nós, meros mortais, essa quantia representa mais do que ganharemos em toda nossa vida. Porém, em números de cinema, é um valor ambíguo. Ao mesmo tempo em que é consideravelmente baixo para grandes produções, ele também é um investimento insano em um projeto que não tinha qualquer garantia de retorno. Não só pela história bizarra do longa e sua proposta mais incomum, mas também porque Elizabeth Banks ainda não emplacou nenhum grande sucesso na direção – sua versão de As Panteras (2019) deu um prejuízo considerável para o estúdio. E cá entre nós, é bem provável que nem mesmo o responsável por aprovar esse filme pudesse esperar o sucesso repentino que está fazendo lá fora (já arrecadou mais de 60 milhões de dólares) e deve repetir aqui no Brasil.
Pois bem, com esse orçamento mais elevado para um filme “aposta”, o elenco conseguiu atrair atores mais conhecidos, incluindo o falecido Ray Liotta, a quem o longa é dedicado. Grande parte dos profissionais em tela conta com bons trabalhos na carreira, mesclando experiência com juventude. A história gira em torno de um caso real que aconteceu num parque nacional da Geórgia, nos EUA dos anos 80. Na ocasião, um traficante de drogas achou estar sendo perseguido pelo avião da polícia, despejou o carregamento de sua aeronave lá do céu, os malotes de cocaína caíram na floresta e um pobre dum urso acabou comendo mais de 40 kg do entorpecente. A diferença da vida real para o filme é que o animal teve uma overdose imediatamente após o consumo do pó e morreu sem atacar ninguém. Só que estamos falando de Hollywood, então Banks decidiu propor ao mundo imaginar como seria a vingança perfeita do coitado do urso, transformando ele numa máquina assassina que faz o Tubarão de Steven Spielberg parecer uma tilápia.
E como a equipe criativa teve liberdade total para trilhar os rumos dessa história, eles decidiram explorar todos os clichés possíveis dos filmes de terror sacana das fitas VHS do século passado. Então, há vários núcleos na trama que vão convergir os caminhos em dado momento: tem as crianças desbocadas, os adolescentes vândalos, os guardas bonachões e meio desligados da realidade e aquilo que, pra mim, é o coração do filme: uma dupla ao melhor estilo “Buddy Cop”, com a exceção de não se tratarem de policiais, mas de dois traficantes em busca da cocaína perdida. O arco desses dois, que são vividos brilhantemente por Alden Ehrenreich e O’Shea Jackson Jr., representa perfeitamente o tipo de subversão que esse filme propõe. Eles podem representar os vilões da história, só que são abordados quase como uma dupla de policiais, com o guarda bom e o guarda mau. Você compra as situações em que eles se metem, por mais absurdas que sejam, e chega até a torcer por eles.
O outro núcleo que rouba a cena é chefiado pela mãe das crianças perdidas, que sai em busca dos pimpolhos floresta adentro com a guarda-florestal e quem mais encontrar pelo caminho. A partir desse encontro, o grupo esbarra no urso, o que gera novos núcleos. Cada um mais inesperado e ridículo que o outro, formados apenas para serem mortos das formas mais violentas e explícitas possíveis.
E se nos filmes antigos havia uma carência de orçamento, que fazia com que as equipes de efeitos visuais se virassem com o que tinham para criar cenas grotescas, a verba mais alta aqui foi revertida praticamente para criar o urso em CGI, porque o resto das lesões, que incluem desmembramentos, tripas de fora, mãos explodidas e um verdadeiro banho de sangue, são fruto de um trabalho maravilhoso de efeitos práticos. É a boa e velha chacina cinematográfica, que consegue chocar por seu caráter explícito, ao mesmo tempo que diverte com o absurdo das situações e as reações dos personagens que são estereótipos ambulantes. Vale destacar a participação MARAVILHOSA de Jesse Tyler Ferguson (o Mitchell, de Modern Family), que é tão idiota e propositalmente caricata, que te faz torcer pro urso destroçá-lo da maneira mais cruel possível.
Nesse meio, há também uma dupla infantil que esbanja talento. Brooklynn Prince surgiu para o cinema quase um bebê em Projeto Flórida (2017), já Christian Convery aqueceu o coração dos fãs de quadrinhos com a série Sweet Tooth (2021). No filme, a duplinha do barulho tem muita química em cena e trazem aquele humor infantil para um contexto mais adulto de drogas e homicídios. Eles protagonizam cenas que também beiram o absurdo e arrancam aquele riso de desespero, mas certamente se divertiram horrores gravando esse filme e suas “nuances”, por assim dizer.
E fez bem ter essa molecada, porque senão certos momentos ficariam pesados demais, tirando esse equilíbrio de comédia de terror, podendo levar mais para o lado do terror em si, o que quebraria um pouco dessa atmosfera oitentista que o longa promove. Falando nessa década, a construção de “anos 80” de O Urso do Pó Branco é muito competente, dando banho de caracterização em muitas projetos de orçamento maior. Eles usam a simplicidade da época para trazer figurinos variados que explicitam bem o que era a época.
E agora vamos ao protagonista do filme: o urso. Ou melhor, a ursa. Como a história aconteceu na vida real, o corpo do animal foi empalhado e está até hoje exibido em um shopping nos EUA. Então, as referências visuais do bicho foram bastante fiéis. E ao mesmo tempo que retrata um Urso Negro, a equipe de efeitos especiais conseguiu dar carisma ao animal de CGI. Diferentemente de O Rei Leão (2019), a ursa consegue demonstrar algumas expressões, e como ela está doidona o tempo todo, acontece bastante humor corporal. Há uma única cena em que eles apelam para o caricato quanto ao Ursinho Pó, mas a cena em si é tão engraçada e tão genial, porque acontece num momento de violência extrema, que não consegue te desligar da história. Muito pelo contrário! É exatamente esse tipo de situação que faz desse o filme mais surtado do ano.
Também há sequências dignas dos grandes vilões, como toda a sequência envolvendo a ambulância. É também o momento mais absurdo do filme, só que está muito dentro do que é proposto.
No fim das contas, assim como em todo filme que dá o que falar, gostar do resultado passa diretamente por você comprar ou não a proposta do longa. Não espere um terror sério, porque o próprio filme não se leva a sério, mas esteja pronto para momentos capazes de traumatizar uma criança sendo seguidos por piadas visuais com as tragédias inseridas de forma espetacular.
O trabalho de Elizabeth Banks é muito interessante na direção. Ela trabalhou ao longo de sua carreira com ícones dos filmes de terror trash, como Sam Raimi e mais recentemente com James Gunn, e dá pra ver a influência deles em sua visão como diretora. Ela amadureceu bastante desde seu último filme e com o sucesso deste longa, certamente conseguirá trabalhos maiores. Ao mesmo tempo, é fantástico ver essa valorização e o resgate do Cinema Trash, que deu ao mundo diretores fantásticos, como o próprio Sam Raimi, Guillermo Del Toro e Peter Jackson.
O Urso do Pó Branco é pura diversão, constrangimento e desconforto para quem busca uma diversão descompromissada recheada de boas piadas e violência extrema. Não é o filme para levar sua tia avô da igreja, que se choca quando a o Louro Mané fala palavrão sem querer na TV, para assistir – é bem provável que ela pare de falar contigo e te ache um maluco -, mas com certeza vai divertir muito desde o público adolescente até os mais adultos. É uma experiência que definitivamente vale ser vivida numa sala de cinema com o telefone desligado e um baldão de pipoca. O único “defeito” para sua proposta é o clímax ser um pouco sério demais, feito para explorar mais a presença de Ray Liotta no longa, mas nada que comprometa. Segue uma diversão de primeira!
O Urso do Pó Branco está em cartaz nos principais cinemas do Brasil.