‘O Vazio’ é uma série como nenhuma outra. Ninguém poderia imaginar que uma animação de dez episódios sem qualquer marketing excessivo por parte da Netflix se tornaria uma das melhores narrativas da plataforma de streaming dos últimos anos – por não se pressionar a buscar a originalidade e deixar que o microcosmos criado pela sua própria perspectiva tomasse o rumo necessário para se convencer e nos convencer de uma mescla entre realidade e loucura. Não é à toa que a simples premissa não é compreendida até os capítulo finais da temporada – propositalmente levando o público através de um caminho maluco e sem qualquer nexo até que comecemos, junto aos protagonistas, a compreender as normas e as leis que regem aquele lugar.
A série de inicia da forma mais bizarra possível: três adolescentes acordam em uma sala revestida por concreto, contendo nada além de um duto de ar inalcançável e uma máquina de escrever antiquada – sim, é exatamente isso o que você leu. Assim que conseguem ter uma noção de onde se encontram, percebem que não têm memória de uma coisa sequer, nem mesmo de como se chamam. Não é à toa que ficam sem opção a não ser acreditar nos pequenos pedaços de papel que encontram nos bolsos, contendo os nomes Adam (Peter Bundic), Kai (Connor Parnall) e Mira (Lana Jalissa). Talvez eles sejam aquelas pessoas, talvez não; mas primeiro, devem descobrir como sair de lá e encontrar respostas para perguntas que ainda nem tomaram forma.
O espectador também não vê outra alternativa além de acompanha-los na jornada por explicações – e tal epopeia se mostra recheada de obstáculos que se mostram cada vez mais perigosos. O trio eventualmente consegue sair do confinamento apenas para adentrarem em um mundo muito mais hostil e que quase beira o nonsense; aqui, já faço um breve parênteses para dizer que, apesar das escolhas propositais, essa estética mais absurda e irreverente pode não agradar a todos – principalmente se não estão acostumados a mergulhar em uma trama que se recusa a seguir convencionalismos formulaicos. É claro que estamos falando de uma série infanto-juvenil (não é nenhuma surpresa que os criadores tenham se inclinado com bastante afinco às técnicas das animações em 2D para darem vida aos personagens), mas não pense que as coisas são jogadas. Cada uma insurge com o propósito único de nos envolver, e isso funcione na maior parte do tempo
Ainda que nem nós nem os protagonistas compreendam o que está acontecendo, podemos traçar alguns paralelos com outras épicas aventuras do cinema e da televisão que se respaldam na clássica jornada do herói para se concretizarem. O showrunner Vito Viscomi, em parceria com outros três nomes competentes da indústria – e que por alguma razão não são tão conhecidos assim – fez bom uso do material do qual se dispunha e ousou ir até além; diferente de franquias que também seguem pelo mesmo padrão, a compulsória necessidade de explicar as “regras do jogo” dá lugar a uma premissa de independência quase mortal e angustiante. Nós, assim como os personagens principais, estamos sedentos para entender o que diabos está acontecendo – e essa é a principal mágica da série.
Além de criaturas horrendas e que não pensariam duas vezes antes de matá-los, o grupo é auxiliado – se é que posso chamar isso de “auxílio” – pela mais bizarra presença de um charmoso homem intitulado Cara Estranho (Mark Hildreth), o qual tem pele azul e usa roupas chamativas. Aparentemente, ele tem o poder de conjurar portais para salvá-los em momentos de tensão, mas repete numa constância perturbadora para tomarem cuidado com as vezes que poderão pedir por ajuda. Tudo segue uma linha de pura essência enigmática, respaldada pela tétrica trilha sonora que propositalmente não se decide entre algo mais brando ou mais cru, levando-nos à criação de inúmeras teorias para tentar explicar qualquer coisa.
Eles estão mortos? Em um universo paralelo? Em um experimento de algum cientista maluco? Se estão, porque eles foram escolhidos? E como farão para voltar para um lar do qual nem mesmo se lembram? As questões multiplicam-se a cada sequência que se delineia – e por vezes esquecidas para dar lugar às obrigatórias cenas de combate. Apesar de existirem em certo excesso e tornarem-se repetitivas, a maestria cênica com a qual esses momentos são tratados varre os evidentes equívocos e até mesmo serve como base para futuras subtramas importantes – e brechas para aumentar as complexas personalidades dos protagonistas.
O roteiro segue por uma sucessão de acontecimentos que crescem até o primeiro dos ápices da série – a revelação de que, na verdade, Adam, Kai e Mira estão dentro de um videogame. Tal virada pode parecer estranha apenas com esse texto, mas na verdade é um mindblow completo que muda tudo o que pensávamos a respeito daqueles estranho e fantástico cosmos. Entre monges demoníacos, cachorros mutantes, os Quatro Cavaleiros do Apocalipse e uma árvore falante, as explicações sobre os poderes que adquirem e a missão na qual mergulham começam a ganhar mais sustância ao compreendermos que, na verdade, a própria falta de nexo faz sentido. E, como se não bastasse, o time criativo aproveita disso para aumentar a metalinguagem com a qual trabalhava sem percebermos.
Por incrível que pareça, a considerável quantidade de coadjuvantes e antagonistas não se mostra saturada – porque é a ideia de um game ter essas personas para aumentarem a credibilidade da storyline. A narrativa principal toma conta de alguns determinados pontos e deixa que a imaginação corra livre para se render ao que nos envolver mais que qualquer coisa: o suspense, o terror e o inesperado. É por isso que ‘O Vazio’ merece sim um reconhecimento maior do que está tendo – por misturar tantas coisas boas em um lugar só sem perder seu brilho e sua originalidade.