Filme assistido durante o Festival de Toronto 2020
Seu sangue, sua ancestralidade e sua cor são os aspectos inerentes que os unem. Nascidos de uma mesma raça, Malcolm X, Sam Cooke, Jim Brown e Muhammad Ali foram homens negros que em sem próprio tempo foram capazes de se imortalizar como ícones. Conectados por suas origens, mas dispersos e bem distintos uns dos outros em suas personalidades e estilos de vida, esses quatro homens que marcaram a negritude norte-americana e mundial protagonizam aqui um conto ficcionalizado baseado em fatos reais, que teria sido um sonho de testemunhar na vida real. E Em One Night in Miami, Regina King estreia na direção com uma daquelas histórias de cabeceira que são tão emblemáticas de ouvir, que despertam devaneios ousados e curiosos e nos fazem imaginar como teria sido viver naquele instante, naquela noite em Miami.
Esse encontro entre essas quatro figuras ganhou vida para além do nosso imaginário pelas mãos do dramaturgo Kemp Powers, que assina a peça homônima, bem como o roteiro do longa. Aqui, X, Cooke, Brown e Ali são amigos que dividem o fardo da luta pelos direitos civis dos negros, mas que colidem entre si em virtude de suas dialéticas e didáticas quando o assunto é o confronto contra o racismo. E o que deveria ser uma noite agradável em uma cidade quente, para celebrar a vitória do então Cassius Clay (que futuramente atenderia pelo nome de Muhammad Ali), se transforma em uma perplexa e afrontosa noite de contrastes e desavenças, quando as percepções de cada um sobre a vida, luta e até mesmo morte começam a colidir entre si.
E nasce dali, em um quarto singelo de um motel não identificado, um dos dramas mais poderosos de 2020. Se desabrochando como uma espécie de ensaio, em que seu personagens orbitam e navegam exclusivamente em torno de seus diálogos, pensamentos e medos, One Night in Miami é uma produção inspirada na perspectiva da vida real dos seus próprios protagonistas e sustenta o seu enredo exatamente nessa autêntica e genuína essência que essas quatro personalidades já tinham, em uma noite que de fato aconteceu. Se desdobrando a partir disso para uma jornada culta, intelectual e intimista, o drama é uma mistura apaixonante de ficção e realismo, deixa a linha que os separa bem turva e tênue, justamente a fim de nos fazer compreender o peso de ser negro em uma sociedade excludente e segregacionista.
Desenvolvendo uma dinâmica relacional conflitante, angustiante e ora calma e aprisionada em um quarto de hotel, nos desvencilhamos da cidade de Miami em si para viver a atmosfera quase claustrofóbica desse pequeno espaço, onde os amigos Malcolm X, Sam Cooke, Jim Brown e Muhammad Ali tentam sufocar suas opiniões uns sobre os outros, apenas para acabarem em uma rota de colisão emocional e existencial. Aqui, assuntos pontuais e categóricos como racismo, liberdade econômica para o povo negro, convencionalismo racial, colorismo e igualdade ganham vida de forma voraz, consumindo os anseios e desejos dos personagens, à medida que nos traga para uma epifania onde a audiência em si se vê forçada a confrontar seus próprios sistemas e escolhas.
Com um discurso excelente, afiado, às vezes doloroso, impiedoso e difícil de ouvir, o drama de época é absolutamente contemporâneo, sem deixar de ser certeiro em relação ao período histórico onde se encontra. Expondo as fragilidades e forças desse homens, One Night in Miami é um prelúdio do que seria o último ano de vida do Malcolm X e traz caracterizações cirúrgicas e clínicas dessas personas, nos presenteando com um banquete de atuações hipnotizantes. Kingsley Ben-Adir (Malcolm X), Eli Goree (Cassius Clay), Aldis Hodge (Jim Brown) e Leslie Odom Jr. (Sam Cooke) honram a responsabilidade que receberam da Regina King e extraem os maneirismos, o tom de fala e a linguagem corporal destes ícones.
E King, como uma cineasta consciente do seu papel e à vontade na direção como se fosse uma profissional experiente, entrega um filme que explora bem os ângulos, priorizando sempre a expressividade de seus atores – justamente a fim de dar corpo ao discurso do drama, que é o que rege toda a narrativa. Se comunicando com a geração do movimento Black Lives Matter, atingido pretos e brancos, ela estreia em um timing sócio cultural impecável. Recém vencedora do Emmy Award por Watchmen, Regina King faz de One Night Miami uma declaração de amor pessoal aos heróis da raça e caminha com leveza e segurança em direção ao que espero finalmente ser o primeiro Oscar de Melhor Direção da história para uma mulher negra.