Representante da França na corrida pelo Oscar de Melhor Filme Internacional e indicado ao Globo de Ouro, Os Miseráveis não é uma adaptação direta do clássico literário escrito por Victor Hugo. Também não é uma refilmagem ou nova versão do musical inspirado no livro, que fez sucesso nos palcos da Broadway e chegou aos cinemas em 2012, com as presenças de Hugh Jackman, Anne Hathaway, Russell Crowe e companhia no elenco principal. Mas isso não significa que a escolha do nome foi por acaso. O novo filme se passa no bairro de Montfermeil, o mesmo em que acontece parte importante da trama de Hugo.
Stéphane (Damien Bonnard) é um policial que acaba de se juntar ao esquadrão anti-crimes do bairro. Ele passa a trabalhar lado a lado com Chris (Alexis Manenti) e Gwada (Djibril Zonga), e logo em seu primeiro dia se vê envolvido com um conflito envolvendo gangues locais e crianças da região.
A narrativa acontece em meados de 2018, durante a Copa do Mundo da Rússia, em que o sucesso da equipe francesa acaba apaziguando as tensões no país. Mas os problemas sociais seguem vivos, a intolerância contra imigrantes ou pessoas de outras religiões são inerentes inclusive da força policial. Neste contexto, um momento que parece ser de celebração pode logo desencadear em protestos sociais.
É interessante notar como Os Miseráveis é um filme vivo e quente. As ações do trio de policiais desencadeiam em situações emergenciais e urgentes, mas é mais que isso. Há a permanente sensação de inquietude social, de que algo pode sair do controle a qualquer momento.
A escolha de colocar um policial iniciando o serviço no local é importante para colocá-lo como representante do espectador, que sofre com as situações ao seu lado. Ao mesmo tempo, as atitudes mais radicais e destemperadas dos outros dois são contextualizadas (não justificadas) diante de um cenário de tensão que já dura anos. Em determinado momento, inclusive, somos lembrados dos protestos de 2005, que chocou a Europa, deixou muitos carros e espaços queimados, mas que pouco colaborou para a melhoria da vida daquelas pessoas.
Dirigido por Ladj Ly, Les Misérables (no original) é uma obra que comunica muito bem com o cinema e com a sociedade dos tempos atuais. Curiosamente, o longa dividiu o Prêmio do Júri do Festival de Cannes com o brasileiro Bacurau. Por sinal, as duas produções conversam muito entre si no sentido de fomentar uma resistência e se preocupar com ameaças estrangeiras.
Com a ajuda do diretor de fotografia Julien Poupard, Ly cria um sentimento de tensão fascinante. É simbólico notar como a câmera muitas vezes está parada diante dos cartões postais de Paris, como o Arco do Triunfo e a Torre Eiffel – cenários das comemorações da Copa -, mas está sempre em movimento em Montfermeil.
Vale destacar ainda o elenco jovem da produção, especialmente o jovem Issa Perica, que interpreta Issa, um garoto que se vê envolvido em um problema com a política que despertará os conflitos na área. Filho do diretor, Al-Hassan Ly também se sai bem na pele de Buzz, um jovem fascinado por drones que passa boa parte do tempo gravando o que acontece na região.
Com um terceiro ato de tirar o fôlego, Os Miseráveis opta por um final em aberto, o que faz sentido. Afinal, a vida daquelas pessoas segue sem um destino muito claro.
Filme visto durante a cobertura do Festival do Rio 2019