sexta-feira, julho 26, 2024

Crítica | Para Minha Amada Morta

Um drama disfarçado de thriller que tem como trunfo a incerteza cotidiana

É realmente instigante ver os realizadores brasileiros do audiovisual cada vez mais dispostos a saírem do lugar comum, fazendo trabalhos artisticamente ricos e tematicamente inventivos, principalmente abordando gêneros distintos. Naturalmente, sem perder a identidade social tão presente na cinematografia canarinha. Quando o paulista Fernando Coimbra entregou “O Lobo Atrás da Porta” (2014), um fabuloso suspense policial com fortes veias rodriguianas, muitos puderem enfim notar que podemos e estamos fazendo filmes capazes de dialogar com os mais diversos gostos.

O ainda inédito “Mate-me Por Favor” (2016) é outro bom exemplo que ratifica essa atestação. Assim como o longa curitibano “Para Minha Amada Morta”, que vem para coroar e até desconstruir o cinema de gênero, e neste caso é um drama disfarçado de thriller. Onde acompanhamos o luto do fotógrafo criminal Fernando (Fernando Alves Pinto), que encara a dor da perda e depressão devido à morte da esposa. Nem mesmo seu filho é capaz de fazer com que Fernando retome a rotina diária. O sujeito passa os dias revirando tralhas pessoais da mulher, como porta-retratos, roupas ou antigos VHS. Num desses vídeos, Fernando descobre algo que o leva a um segundo luto, a desconstrução de uma imagem. [Talvez os comentários a seguir possam soar como spoilers, ainda que toda trama gire em torno do fato. Logo, caso não queira saber mais, indico ver o filme antes de ler adiante.]

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A revelação da traição de sua tão admirada companheira aumenta o abismo na vida de Fernando, principalmente depois de ouvir a falecida dizer que o amante foi “a melhor coisa que já lhe aconteceu”. Iniciando uma obsessão constante em descobrir quem é a pessoa, pelo seu entendimento, mais importante que o próprio fruto do casal. É como estar diante da vingança premeditada. Mas assim como dá outra cara a esposa, o diretor e roteirista que debuta seu primeiro longa, Aly Muritiba de certa maneira desconstrói ou reinventa o conceito de thriller. Não vemos cenas pulsantes ou grandes reviravoltas, mas a monotonia diária e a angustia de um homem.

Diferente do já citado longa comandado por Coimbra, Muritiba caminha por linhas mais sutis e aposta numa narrativa leve e cotidianamente incerta. Durante toda exibição vamos aos poucos percebendo que o protagonista está na verdade perdido, que não sabe ao certo que direção seguir. Os vários acontecimentos banais da trama levam Fernando a tomar rumos completamente inusitados. O que acaba sendo uma decisão inteligente por parte do cineasta, já que o público também não imagina o que vem pela frente. Deixando a atmosfera fílmica ainda mais tensa e causando grande expectativa no espectador, que se ver apreensivo a cada take ou gesto destacado – ainda que o primeiro ato apresente claros problemas de ritmo e soe um tanto prolixo.

Outra grande surpresa é a aparição (e também função) do tal amante, que ganha o nome de Salvador (Lourinelson Vladmir), e não por acaso parece mesmo salvar Fernando do marasmo que se encontra. Pois, de uma forma ou de outra, o homem vê sua vida mudar, respira agora novos ares e parece ter enfim se desprendido de certas convenções. Desse modo, Muritiba não só faz com que tudo e ao mesmo tempo nada aconteça dentro da vertente empreendida, como também usa a figura de conflito para um novo propósito. Tudo orgânico e absolutamente possível.

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Muito da credibilidade vista no protagonista se deve a elegante atuação de Fernando Alves Pinto, que bem como a narrativa, é sutil em sua interpretação. Com gestos delicados e naturais, mesmo tendo pouquíssimas linhas de diálogo, o ator não se deixa cair no melodrama e constrói sem exageros a imagem de alguém notavelmente abalado, que está prestes a implodir. Assim também é Lourinelson Vladmir, seu Salvador é igualmente crível e tridimensional. Por sinal, há um plano-sequência magistral, já no desfecho da fita, em que Vladmir divide uma cena tensa e memorável com Alves Pinto.

Sem duvidas, “Para Minha Amada Morta” é um belo começo na promissora carreira do baiano Aly Muritiba, pois já podemos notar marcas distintas em forma e estilo. Um trabalho de quem realmente tem total controle narrativo, que não utiliza de muletas ou diálogos expositivos para sustentar uma trama sólida, interessante e curiosa. Um filme que mesmo autoral por essência, deve ser acessível para diferentes plateias. Um resultado no mínimo louvável.

Texto originalmente publicado na cobertura do VIII Janela Internacional de Cinema do Recife.

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Wilker Medeiroshttps://www.youtube.com/imersaocultural
Wilker Medeiros, com passagem pela área de jornalismo, atuou em portais e podcasts como editor e crítico de cinema. Formou-se em cursos de Fotografia e Iluminação, Teoria, Linguagem e Crítica Cinematográfica, Forma e Estilo do Cinema. Sempre foi apaixonado pela sétima arte e é um consumidor voraz de cultura pop.

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