As badaladas do sino da igreja de Wexford ecoam por todas as suas ruas pouco iluminadas. Mais do que marcar o tempo, elas também sinalizam a imponência de uma igreja católica dominante, que dita o ritmo dessa pequena cidade irlandesa e que silenciosamente “envenena” garotas inocentes em abusivos institutos de correção e reabilitação.
Entre lampejos de desconforto e diálogos ríspidos e desconcertantes, freiras com olhares desconfiados driblam o receio e temor dos moradores locais, que fazem vista grossa para os horrores que ocorrem entre quatro paredes, sob a sombra de uma enorme opressão religiosa. E assim, Pequenas Coisas Como Estas se desabrocha como um filme sobre um tempo que talvez não exista mais, mas cujas sequelas seguem ainda vivas na mente e no corpo de suas vítimas.
No novo longa dirigido por Tim Mielants e roteirizado por Enda Walsh, lançado no Festival de Berlim, Cillian Murphy é um carvoeiro estoico, cercado pela vivacidade de um lar tomado por cinco filhas e sua esposa. A euforia feminina que domina a mesa de jantar é um contraste com sua personalidade soturna e tristonha, pautada por noites mal dormidas e uma insônia que o persegue. As memórias de uma infância dolorosa se cruzam com seu presente e com sua rotina tomada pelo negrume do carvão que carrega nas costas e que entrega de porta em porta.
Uma dessas portas o leva para dentro desse instituto de correção e reabilitação, onde freiras com aparência sisuda recebem meninas aflitas, cientes de que suas vidas jamais serão as mesmas. Curioso para compreender esse pequeno submundo que apenas conhece de ouvir falar, Bill Furlong gradativamente se vê confrontado com os relances de violência verbal e física que testemunha, em meio a gritos de socorro e choros incessantes. E tragado por essa densa nuvem, Murphy se entrega a mais um personagem com maestria, transformando o silêncio e o estoicismo em uma performance que brada a plenos pulmões.
E ainda que o ritmo lento de Pequenas Coisas Como Estas possa distanciar sua audiência da trama, a verdade é que o drama baseado na obra literária de Claire Keegan funciona como uma discreta chama que cresce gradativamente. Na expectativa de que seu público mergulhe com cautela nesse “mistério” tal como o próprio protagonista, o drama é um convite ao silencioso sofrimento de um homem no auge dos anos 80, vindo de uma cultura masculina em que traumas jamais eram tratados e criado sob os rígidos dogmas da Igreja Católica.
E à medida em que infância, fé, família e religião começam a se digladiar dentro e fora da mente do protagonista, Pequenas Coisas Como Estas cresce, nos perturba tanto quanto aos seus personagens e nos leva em direção a uma experiência difícil, pesada, mas poderosa. Com uma fotografia fria, que destaca o gélido e chuvoso inverno irlandês, o longa de Mielants é melancólico, duro de digerir, mas necessário como uma memória viva daquilo que jamais pode se repetir. Com Emily Watson brilhando em uma performance intensa, que se revela na frieza da Irmã Mary, o drama é uma dolorosa epifania sobre o doloso domínio da Igreja Católica sobre algumas comunidades irlandesas. Escondidos debaixo do manto da religião, padres e freiras ajudaram a perpetuar uma onda de horror e traumas que ainda caminham com suas vítimas.
E parte dessa extensão de sofrimento flui para fora das telas, tomando a audiência da mesma angústia tão lindamente expressa por Murphy. Mas ainda que a melancolia da história de Bill e daquelas jovens garotas aprisionadas no instituto de correção paute a maior parte do ritmo do longa, há também um esperançoso feixe de luz que rompe a vasta barreira de sombras. Trazendo um final delicado e doce, Pequenas Coisas Como Estas se encerra com um sopro de esperança e ternura, um sorriso efêmero, mas gentil e genuíno que nos lembra que não há trevas que durem para sempre.