Responsável por obras urgentes e radicais como Amarelo Manga, Baixio das Bestas e Febre do Rato, o diretor Cláudio Assis realizou com Piedade seu filme mais pessoal. Inspirado livremente na história do próprio cineasta (que foi separado do irmão quando jovem e passou anos procurando por ele) e na história da região de Pernambuco (em que a invasão de grandes empresas e da especulação imobiliária atingiu boa parte da população), o longa transborda afeto.
A trama acompanha moradores da fictícia cidade de Piedade, que viviam do turismo e da pesca até que a chegada de uma indústria petroleira inviabiliza o litoral e faz com que o mar fosse tomado por tubarões. Em meio a isso, Aurélio (Matheus Nachtergaele), um executivo da Petrogreen, é enviado para negociar com as famílias e tentar tirar os moradores de uma vez por todas da região. Ele encontra resistência em Dona Carminha (Fernanda Montenegro) e seu filho Omar (Irandhir Santos).
Ao mesmo tempo, Sandro (Cauã Reymond) tenta levar a vida como dono de um cinema pornô da região, que administra com a ajuda do filho Marlon (Gabriel Leone). As vidas dos dois acabam se cruzando com a de Aurélio. Sandro através de uma atração física e Marlon através do repúdio com a figura do capitalista que busca que aproveitar de tudo e todos.
O texto dos roteiristas Anna Francisco, Dillner Gomes e Hilton Lacerda toca em vários temas da atualidade, como destruição ambiental e social, ativismo político, especulação imobiliária e muito mais. Mas o que chama mesmo a atenção na narrativa é a relação entre as pessoas, sobre os encontros e desencontros da vida. É uma obra claramente política e com conotação social, mas os relacionamentos pessoais são tão bem tratados que dão todo um novo peso dramático à trama. Carminha é uma mulher batalhadora, que luta contra as dificuldades financeiras para continuar cuidando de seu bar, mas que tem uma perda muito marcante em sua vida. Omar é o filho que ficou para ajudar a mãe e acaba assumindo uma figura paterna para o sobrinho Ramsés (Francisco Assis Moraes), que mora com eles. Por sua vez, Sandro é um jovem de 30 e tantos anos que tem que lidar com as responsabilidades de ser o pai de um adolescente. Ele acaba desenvolvendo uma relação inusitada com Aurélio, uma figura predatória (como os tubarões) que o vê como alguém que pode ajudá-lo a atingir seus objetivos e ainda ajudar a saciar suas vontades físicas. Neste sentido, é curioso analisar o relacionamento de Aurélio com sua mãe (Denise Weinberg), que aparece apenas via chamada de vídeo, mas o suficiente para mostrar uma dinâmica de uma proximidade falsa, em que você mantém contato permanente com a pessoa sem nunca se revelar a si próprio.
Elemento importante no cinema de Cláudio Assis, o sexo está presente de forma ativa na obra. Não só através do cenário do cinema pornô, que ganha muito espaço na trama e representa um belíssimo esforço de design de produção, mas principalmente na relação entre Sandro e Aurélio. Cauã Reymond e Matheus Nachtergaele possuem duas cenas de sexo que podem abalar os mais conservadores, mas que são muito bem trabalhadas e ensaiadas.
A montagem de Karen Harley, parceira constante do diretor, é errática, mesclando bons momentos com alguns excessos de informações, especialmente no registro do núcleo ativista. A fotografia de Marcelo Durst também é um ponto com problemas. Ele filma bem as sequências no mar e no cinema, mesclando constantemente as cores azul e vermelho, mas há pouca vida na fotografia. Há um tom quase que predominante do cinza, que até se encaixa com o desfecho da história, mas que pouco funciona quando estamos diante do bar na beira da praia.
Dentre os vários méritos de Assis, destaca-se ter conseguido reunir um elenco realmente impressionante. Santos e Nachtergaele são parceiros constantes do diretor, mas a entrada de Montenegro e Reymond ajudou muito na formação do time. No caso específico de Fernanda, é impressionante como ela transmite sentimento. Seja dor ou alegria, sua personagem é complexa e envolvente. Ela é generosa com seus parceiros de cena, e tal generosidade também se estende ao público, que se sente claramente acolhido por aquela mulher.
Piedade é uma obra com problemas. Mas as deficiências também são parte do cinema autoral e de baixo orçamento de Cláudio Assis. O cineasta quase não conseguiu concluir o filme por causa de um AVC sofrido após as gravações. Felizmente, ele se recuperou. O cinema brasileiro agradece.
Filme visto durante o 52º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro.