Yorgos Lanthimos é um dos diretores mais originais do cenário contemporâneo do entretenimento – e, ao longo de sua carreira, entregou obras-primas visuais e narrativas, como ‘O Sacrifício do Cervo Sagrado’, ‘O Lagosta’ e ‘A Favorita’ (este rendendo o Oscar de Melhor Atriz a Olivia Colman. E, cinco anos depois de sua última investida nos cinemas, o realizador grego retornou com o antecipadíssimo ‘Pobres Criaturas’, uma livre releitura de ‘Frankenstein’, de Mary Shelley – e que chegou ao circuito nacional hoje, 01 de fevereiro. E, considerando a perfeição artística que nos entregou com suas últimas produções, não poderíamos deixar de ficar animados para ver essa mais nova aventura a que Lanthimos se lançaria, acompanhado de um time estelar, à frente ou atrás das câmeras.
O resultado não poderia ser outro: além de apresentar uma perspectiva totalmente original ao clássico romance de Shelley, o cineasta mergulha em uma reflexão sobre a imutabilidade da condição humana dentro de um contexto de época, prezando por uma atemporalidade que em nenhum momento soa anacrônica, mas que fornece os elementos necessários para criar um elo entre passado, presente e futuro – um retrato que, ao mesmo tempo, é otimista e pessimista, infundido em uma celebração surrealista das pulsões do indivíduo. Como se não bastasse, Yorgos reitera seu importante status na sétima arte e entrega o melhor longa-metragem dessa temporada de premiações (e um dos grandes títulos das últimas décadas).
A trama acompanha Godwin “God” Baxter (Willem Dafoe), um cirurgião excêntrico que recupera o corpo de uma mulher suicida e resolve trazê-la de volta à vida. Entretanto, ele não apenas a coloca em uma máquina para induzir choques neurais e ressuscitá-la, e sim utiliza o cérebro do infante que ela carrega em seu ventre, trocando-o com o da mulher – e induzindo a criação de uma criatura que resolve adotar como filha, batizando-a de Bella Baxter (Emma Stone). A partir de então, Godwin recruta a ajuda de um de seus alunos de medicina, Max McCandles (Ramy Youssef) para que ele possa anotar o progresso motor e mental de seu mais novo experimento, à medida que ela atravessa a infância, adentra a adolescência e chega à fase adulta em uma incursão condensada do que significa existir em um mundo marcado pela constante mudança – e que tem início com a chegada do charmoso enganador Duncan Wedderburn (Mark Ruffalo).
A princípio, não sabemos exatamente com o tipo de filme que estamos lidando: Lanthimos, como já mencionado, apoia-se com força na estética surrealista e não pensa duas vezes antes de elevar o estilo de que se aproveita à enésima potência. O filme é dividido em momentos bem distintos: o primeiro deles é pautado no monocromatismo do preto-e-branco, em que Bella se vê confinada aos limites da propriedade de Godwin, podendo sair sob estritos cuidados e sem o contato com outras pessoas – que não vão compreender seu jeito único de enxergar e de absorver o que está a seu redor; o segundo, por sua vez, é mergulhado num contraste absurdo de cores, que inclinam-se para referências a Pablo Picasso, Vincent Van Gogh, Salvador Dalí e outros artistas do fin-du-siècle que remavam contra as tendências engessadas do parnasianismo e da arte barroca (e que representam a liberdade recém-conquistada da protagonista).
Cada elemento é pensado com minúcia e audácia apaixonantes – e o diretor aproveita os elementos que o cercam para nos levar ainda mais ao limite entre a loucura e a sanidade. Não é surpresa que ele opte pela utilização de uma lente supergrande angular (conhecida como “olho de peixe”) para maximizar a captação do espaço à medida que o distorce à concepção de Bella em seu necessário coming-of-age. A ideia é garantir que sigamos a jornada da personagem principal em um senso de “causa e consequência”, nos obrigando a focar em tudo o que acontece e de que forma isso premedita as ações futuras de Bella – seja quando conhece Alexandria e se depara com o primeiro gosto do abismo social que separa as pessoas, seja quando chega à Paris e resolve trabalhar em um bordel, explorando sua sexualidade à medida que encontra empoderamento (e enfrenta os percalços de ser uma mulher em uma sociedade dominada pelo pensamento masculino).
Se a identidade visual é certeira, os trabalhos performáticos são sublimes. Stone, que deve levar seu segundo Oscar de Melhor Atriz, navega entre construções animalescas e filosóficas para compendiar uma espécie de “jornada do herói” às avessas, tendo um senso de entendimento do que está a seu redor com acidez e inocência hilárias: ela não pensa duas vezes antes de compartilhar “descobertas” com os outros, chocando a polidez de uma comunidade extremamente tradicionalista ao se masturbar pela primeira vez ou ao engajar em suas andanças sexuais com Duncan ou outras pessoas; ela também se mostra impetuosa ao querer mudar o mundo dos problemas que o afligem, sendo taxada como monstro ou bruxa por pensamentos muito à frente de seu tempo e que não poderiam ter sido melhor traduzidos por outra atriz às telonas.
Acompanhando-a, temos Dafoe em um dos papéis mais marcantes de sua carreira, ratificando uma versatilidade infindável, passando por um irreconhecível Ruffalo – que mereceu sua indicação ao Oscar de Melhor Ator Coadjuvante -, à circunspecção tardia de Youssef como Max, perdidamente apaixonado por Bella e impotente de impedir suas andanças, à presença icônica de Kathryn Hunter como Madame Swiney, dona do bordel, e a outros atores que brilham em uma explosão de sentimentos e de distinções que torna impossível a tarefa de desviar os olhos das telonas.
Não exagero quando repito que ‘Pobres Criaturas’ é o melhor título dessa temporada de premiações, a melhor entrada da filmografia de Yorgos Lanthimos e o melhor trabalho da carreira de Emma Stone – navegando entre o grotesco e o belo, o singelo e o exagerado, a realidade e o misticismo através de um complexo enredo que nos leva a refletir sobre o sentido da própria vida.