Se há algo que Lana Del Rey sabe como fazer, é transformar música em poesia. Como ninguém, a performer estadunidense abriu portas para um tipo de narrativa que não necessariamente se encaixa em quaisquer rótulos, mas que faz bom uso de elementos diversos para criar um gênero próprio que a tornou símbolo do que faz – isso é, brincar com emoções e construções sinestésicas para passar as mensagens que deseja.
Apesar de ter encontrado fama com seu álbum de estreia, ‘Born To Die’, não seria até 2019 que Lana provaria ser uma das maiores compositoras da contemporaneidade com o lançamento de ‘Norman Fucking Rockwell!’, que não apenas entrou para listas de fim de ano, como também foi condecorado como um dos suprassumos fonográficos da década passada. Pouco depois, a artista retomaria parceria com Jack Antonoff com o também aclamado ‘Chemtrails Over the Country Club’ e, sete meses mais tarde, estaria pronta para abrir um novo capítulo de sua carreira com o antecipado ‘Blue Banisters’.
É claro que a emergência de um novo disco com um tempo tão curto de pausa poderia caminhar em duas direções: a primeira, uma exaustão criativa que não teria coisas diferentes a entregar aos fãs; a segunda, uma completa inversão de papéis que buscaria incursões e experimentações originais que demonstrariam uma ousadia que, de certa maneira, é escassa no escopo da música contemporânea. O resultado, felizmente, pende mais para a segunda direção e, ainda que Del Rey não fuja muito da melancólica identidade que a fez dominar os holofotes, a auxilia a ter um forte tato para aventuras com as que não está acostumada – permitindo que ela colabore com outros produtores. Não é surpresa que, logo nas primeiras faixas, tenhamos a presença de nomes como Gabe Simon, Zachary Dawes e Loren Humphrey, que fazem alusão a eras passadas da cantora sem pensar duas vezes antes de ambicionar pela distinção estética.
Quando pensamos na discografia de Lana, algumas faixas clássicas automaticamente vêm à tona em nossa memória – como “Summertime Sadness”, “Gods & Monsters”, “National Anthem” e “Doin’ Time”. Em ‘Blue Banisters’, ela resolve homenagear a si mesma com a cautela necessária para não se respaldar no pedantismo artístico e sempre fazendo questão de manter-se fiel à imagem que calcou no passado. Afinal, o intimismo que alimentou durante vários anos foi arquitetado de modo a construir uma ponte entre o presente e um passado místico dominado por nomes como Frank Sinatra, Billie Holiday e Nina Simone – e é em um momento de pura rendição e fragilidade que Lana se despe de quaisquer máscaras e mostra o lado mais pessoal de sua personagem.
Voltando a assinar e a produzir todas as faixas do álbum, Del Rey dá início à jornada com a incrível track “Text Book”, cujo arranjo instrumental já revela um apreço pelo sensorialismo e pela completa despreocupação com as fórmulas – esclarecidas pela amálgama sensual do baixo, da bateria e de vocais irretocáveis que pegam páginas emprestadas da discografia de Amy Winehouse, por exemplo. O mesmo acontece em “Black Bathing Suit”, prenunciando o início de um novo capítulo do disco e permitindo que as referências ao jazz e ao blues gritem em toda sua sutileza e desconstrução, como se os rigores engessados dos clichês musicais deixassem de existir em prol de uma vulnerável poética que deixa marcas em cada refrão e cada verso.
Caracterizar os álbuns de Lana como “idênticos” é realmente não ter a capacidade de perceber os minuciosos detalhes que se escondem em suas músicas – e não compreender a argúcia da qual a artista se vale para dar vida a enredos apaixonantes e movidos por experiências que variam do efêmero ao eterno. Aqui, nota-se uma transgressão do que se tomava como verdade, numa medida que transcende nossas expectativas e desbrava um terreno cinemático e profundamente dramático: a representação máxima desse respaldo vem com “Arcadia”, cuja carga sentimental transborda em uma teatralidade invejável e que, dentro do que se propõe a fazer, nem ao menos tangencia a imodéstia; marcada por versos como “meu corpo é um mapa de Los Angeles” e “não posso dormir em casa esta noite, me mande para o Hotel Hilton”, Del Rey continua a degustar as próprias metáforas através de uma elegância atemporal que atravessa gerações.
A obra se apoia com força quase sobrenatural em instrumentos clássicos, cuja transcrição melódica destina-se ao piano, aos violinos e aos violoncelos (um consenso de praticamente todas as faixas). Canção a canção, Del Rey parece mais determinada a superar a si mesma – e espelha-se em trilhas sonoras fabulescas para iterações como “Beautiful” e “Dealer”, bem como a reprodução em trap de “Interlude – The Trio”, que resgata Ennio Morricone em seu melhor. Em “Thunder” e “Violets for Roses”, a artista se alicerça em orquestrais histórias que declama com facilidade aplaudível e que fazem breves investidas para o country com a junção da bateria com o violão; “Living Legend” e “Cherry Blossom”, por sua vez, mergulham no acústico e proferem sobre temáticas universais que aproximam os ouvintes de reflexões metafísicas e bastante tocantes.
‘Blue Banisters’ é mais uma ótima adição à carreira de Lana Del Rey e, apesar de não chegar à maestria de seus últimos dois álbuns, ainda arranca versos pungentes e muito bem construídos de uma artista que tem muito a nos contar – e que, lançamento após lançamento, amadurece o próprio estilo para encantar as pessoas ao redor do mundo.
Nota por faixa:
1. Text Book – 4,5/5
2. Blue Banisters – 4/5
3. Arcadia – 5/5
4. Interlude – The Trio – 4,5/5
5. Black Bathing Suit – 4/5
6. If You Lie Down With Me – 4/5
7. Beautiful – 4,5/5
8. Violets For Roses – 4/5
9. Dealer (Ft. Miles Kane) – 4/5
10. Thunder – 4,5/5
11. Wildflower Wildfire – 5/5
12. Nectar of the Gods – 3/5
13. Living Legend – 4/5
14. Cherry Blossom – 4/5
15. Sweet Carolina – 3,5/5