A literatura gótica tem suas raízes no período pré-romântico, mais precisamente em meados do século XVII. Ainda não totalmente rendida aos preceitos idealistas que seriam marco do começo do século seguinte, as obras lançadas na época em questão tratavam de temas como o amor e o prospecto inevitável da morte com uma espécie de metafísica neoclassicista, movida mais pela razão em conflito com a loucura do que pelas emoções. E, por mais que esse gênero não soe familiar, é bem provável que certos títulos já tenham passado por sua vida em algum momento – como ‘A Abadia de Northanger’ e até mesmo ‘A Outra Volta do Parafuso’, que ganhou não uma, mas duas adaptações neste ano, cada qual com uma perspectiva modernizada e que procuraria revitalizar os contos de fantasmas.
Agora, conforme caminhamos para o final do mês mais místico do ano, chegou a vez da Netflix investir mais uma vez nesse suis generis que não tem a atenção que merece – e que é ofuscado constantemente por incursões similares, mas que não tratam do assunto com a mesma profundidade (como é o caso do gore, do body horror ou do slasher). Depois da irretocável ‘A Maldição da Mansão Bly’, que fundiu suspense e romance em uma única competente atmosfera, a plataforma de streaming resolveu trazer para o público contemporâneo uma releitura de ‘Rebecca’, obra assinada por Daphne du Maurier que já foi adaptada para as telonas por Alfred Hitchcock em 1940. Diferente da obra-prima construída pelo mestre do suspense, que trouxe em seu elenco nomes como Laurence Olivier e Joan Fontaine, a nova versão tentou modernizar de alguma forma a narrativa, dinamizando-a para um público que talvez tenha perdido o costume de apreciar clássicos da Era de Ouro do Cinema – o que, em partes, funciona.
O problema é que o diretor Ben Wheatley não consegue se manter sólido o bastante para cativar os espectadores, criando várias histórias separadas que colidem em uma justaposição forçada de fragmentos perdidos – aliás, é clara a diferença de tratamento entre o primeiro ato e o restante da narrativa, seja no melancólico tom que se apossa dos protagonistas, seja na imagética que toma forma em homenagens simplificadas ao expressionismo alemão e ao noir quarentista. O enredo é centrado em uma jovem dama de companhia interpretada por Lily James que se apaixona pelo misterioso herdeiro Maxim de Winter (Armie Hammer), viúvo cobiçado por praticamente todas as solteiras que conhecem sua trágica história. Eventualmente, os dois cruzam caminho e se casam com rapidez assustadora, com Maxim levando sua nova esposa para a gigantesca propriedade de Manderley, na litorânea Cornuália.
Entretanto, a vida da segunda Sra. De Winter está longe de ser um conto de fadas, visto que ela é recebida de modo bastante frio e julgador pelos serviçais que habitam a enorme propriedade – principalmente pela governanta Sra. Danvers (Kristin Scott Thomas), a qual demonstra ser a força antagônica que incita os obstáculos enfrentados pelo casal. A verdade é que todos ainda sofrem com a morte de Rebecca, a primeira esposa de Maxim, que foi vítima de um naufrágio e desapareceu durante dois meses antes de seu corpo sem vida e inflado aparecer na costa inglesa – e todos continuam comparando a recém-chegada, a então caracterizada como “usurpadora”, com uma poderosa e invencível mulher cujo espírito ainda pode ser sentido nos longos e opressores corredores do estado.
Wheatley é inteligente ao manter a essência da personagem vivida por James, recusando-se a dar-lhe um nome – algo que, de fato, não pode ser mudado, considerando que é cânone do envolvente universo criado por Maurier. A segunda Sra. De Winter é uma tímida construção que não tem forças o suficiente para enfrentar a densa ambiência na qual é mergulhada, observando impotente conforme seu conhecido cotidiano como “a criadagem” é deixado de lado para um poder com o qual não sabe lidar. Mais do que isso, ela é jogada nas sombras de uma imponente figura que ainda permeia os sonhos do marido e que a faz ser tratada com descaso por aqueles que deveriam ajudá-la – ora, ela até mesmo é inconscientemente levada a acreditar na Sra. Danvers, que não a deseja por perto e que faz de tudo para mandá-la embora.
De qualquer forma, essas tênues centelhas de ousadia são apagadas indiscriminadamente ao serem respaldadas por fórmulas tão batidas que transformam essa narrativa em uma convulsionada amálgama de previsibilidades e de personagens desnecessários que não contribuem em nada para a narrativa. Enquanto procura manter a estilística gótica viva, Wheatley se esquece de destinar sua atenção para amarrar as pontas soltas e lapidas a quantidade absurda de subtramas que se estendem profusamente pelos 121 minutos de longa-metragem – como um mistério que se resolve da pior maneira possível e se misturando com inflexões ocasionais que beiram o ridículo, ou então revelações sobre a falecida personagem titular que a jogam em um cruel melindre que não faz o menor sentido.
Por mais que a equipe criativa não perca a mão no tocante às construções artísticas, nos transportando para o complexo período pós I Guerra Mundial em toda sua esquecida e nostálgica glória, ‘Rebecca – A Mulher Inesquecível’ é um erro da Netflix que quase não consegue se salvar de ser um desastre total, com poucos elementos convincentes o bastante para nos afastar da ideia de um simplório rip-off.