Crítica livre de spoilers.
Por quase duas horas e vinte, ninguém na sala ousava respirar.
Essa foi a tensão que se apoderou da sessão de pré-estreia de ‘Nosferatu’, nova empreitada cinematográfica de Robert Eggers. O cineasta, conhecido por suas aclamadas obras de terror e de suspense, já havia nos presenteado com ótimas incursões fílmicas nos últimos anos – sagrando-se um dos realizadores mais respeitados do gênero com os títulos ‘A Bruxa’, ‘O Farol’ e ‘O Homem do Norte’. E não levou muito tempo até que Eggers resolvesse abraçar um dos maiores clássicos da sétima arte, revivendo o lendário longa-metragem de F.W. Murnau sob uma nova perspectiva que tornou-se nada menos que uma obra-prima tangenciando a perfeição.
Encabeçar um projeto de remake de uma obra tão icônica quanto essa não é uma tarefa fácil – e, normalmente, nos deixa com um pé atrás. Porém, considerando a habilidosa mão de Eggers, sabíamos que a história estava segura, ainda mais levando em conta a afeição do diretor por histórias folclóricas e mitológicas, bem como sua capacidade invejável de construir ambientações psicológicas de tirar o fôlego. Não é surpresa que o filme se configure como uma das melhores entradas de sua carreira, por mais comercial que se pareça – garantindo um envolvimento imediato dos espectadores a um conto de terror gótico preocupado com a mais alta expressão artística.
A trama é centrada no casal recém-matrimoniado formado por Thomas (Nicholas Hoult) e Ellen Hutter (Lily-Rose Depp). Ellen sofre de alucinações constantes que envolvem uma figura demoníaca que assombra não apenas seus sonhos, mas todos aqueles à sua volta – e ela sente-se na obrigação de tentar impedir que o marido viaje a fim de fechar contrato imobiliário com um comprador misterioso. Contrariando os avisos da esposa, Thomas embarca em uma viagem conturbada e perigosa até chegar à mansão do Conde Orlok (Bill Skarsgard). É a partir daí que um simples negócio se transforma em um pesadelo sem fim, revelando a verdadeira e profana natureza de Orlok e de que forma sua mortal figura está associada à obsessão doentia de Ellen.
Como mencionado nos parágrafos acima, se há algo que Eggers sabe fazer muito bem é criar atmosferas de pura angústia. Aqui, ele se alia ao diretor de fotografia Jarin Blaschke para prestar homenagem à importância da escola expressionista, brincando com a luz e a sombra de maneira mágica e sobrenatural – e aliando esse jogo minuciosamente construído a um cuidado estético que preza pela ambiguidade cênica e pela supersimetria alarmante. Seja no vilarejo onde os Hutter moram, no castelo de Orlok, ou no meio de uma floresta sombria, Eggers sabe o que quer fazer e de que forma pretende garantir a evocação de emoções primordiais no público.
Cada quadro é arquitetado de forma a relembrar uma pintura gótica, assinando uma carta de amor ao material original (literário e cinematográfico); e, enquanto sabemos estar em meio a uma história de época, o design de produção, o figurino e os outros elementos artísticos promovem uma deliciosa suspensão da realidade que promove uma atemporalidade imagética e sensorial, reiterando a atemporalidade dessa narrativa – que já foi recontada inúmeras vezes. Como se não bastasse, o grandioso teor da produção ecoa tragédias shakespearianas ao dançar entre a lucidez e a loucura, promovendo um encontro entre drama, suspense, terror e inflexões operísticas dosadas com cuidado aplaudível.
À medida que os nomes por trás das câmeras fomentam um espetáculo visceral regado a uma sanguinolência primitiva – esbarrando aqui e ali com certos cortes bruscos de Louise Ford -, o elenco explode em interpretações fantásticas e teatrais (no melhor sentido do termo). É notável como as performances se mostram comprometidas à fábula que se desenrola em tela: Depp encarna a insanidade de ser uma das vítimas de Orlok, entregando a melhor atuação de sua carreira em uma crueza arrepiante; Skarsgard volta a reafirmar sua versatilidade aplaudível ao fundir-se a essência do personagem titular até se transmutar em uma criatura irreconhecível; Willem Dafoe, encarnando o Professor Von Franz, diverte-se em uma roupagem que nos recorda de seu trabalho em ‘Pobres Criaturas’.
Porém, é Hoult quem rouba os holofotes ao dar vida a Thomas Hutter: o co-protagonista da trama já havia aparecido no longa de 1922 e em títulos subsequentes que se basearam na obra de Murnau. Porém, aqui, o ator fornece uma complexidade apaixonante e histérica a esse agente imobiliário que se torna vítima de circunstâncias sombrias e terríveis. Tendo mais destaque no primeiro e no segundo atos, Hoult carrega emoções dilacerantes apenas com o olhar e com o tremular dos lábios, afastando-se de possíveis escolhas canastronas e exageradas – e que, caso o mundo fosse justo, deveriam lhe render ao menos uma indicação à próxima temporada de premiações.
Deixando mais uma marca significativa no escopo contemporâneo do cinema, Robert Eggers atinge um novo ápice artístico com ‘Nosferatu’, singrando pelos intrincados entremeios de um terror gótico perfurante e atormentador – e permitindo que sejamos introduzidos ou reintroduzidos a uma das histórias mais importantes e memoráveis da cultura mundial.