domingo, dezembro 28, 2025

Crítica | Sorry, Baby – Eva Victor assina um dos filmes mais honestos e sensíveis sobre trauma

CríticasCrítica | Sorry, Baby - Eva Victor assina um dos filmes mais honestos e sensíveis sobre trauma

Tudo começa com um reencontro de amigas. Moradora de Nova York, Lydie (Naomi Ackie) retorna para visitar Agnes (Eva Victor) na casa em que moraram juntas, numa cidadezinha próxima à universidade onde cursaram o doutorado. Ali percebemos que Lydie amadureceu, está casada e volta a esse ambiente bucólico para reencontrar a amiga, que permanece na mesma rotina. A preocupação dela é evidente: será que a vida de Agnes parou depois do trauma que sofreu três anos antes? Mas esse “começo” é, na verdade, o antepenúltimo capítulo de uma narrativa em quatro movimentos, que alterna passado, presente e futuro. 

A partir dessa construção fragmentada, Sorry, Baby se revela como uma doce canção sobre como enfrentar traumas, mas sem suavizar ou iludir a experiência dolorosa. O filme aborda um abuso sexual — um tema espinhoso que exige sensibilidade — e o faz de maneira rara: sem impor certo ou errado, sem simplificar, mas mostrando as camadas humanas que se revelam principalmente na amizade e conexão entre Agnes e Lydie.

“Como um momento de dor pode ressignificar a sua trajetória?” Esta parece ser a grande indagação de Eva Victor em seu filme de estreia como diretora, no qual assume as rédeas de forma brilhante, tanto como roteirista quanto como protagonista. Agnes é uma figura cativante, mas cuja interioridade permanece parcialmente velada — o que nos faz desejar conhecê-la melhor. O brilhantismo desta obra está justamente nessa conexão: no modo como permite ao público preencher as elipses entre os capítulos e construir esse caminho junto à personagem.



Embora o tema envolva um crime, a protagonista não busca uma punição legal; seu objetivo é simplesmente tentar se sentir bem, algo que nem sempre é possível. Em uma das cenas mais contundentes do longa — uma tragicômica seleção de júri dentro do tribunal — Agnes reflete que, se fizer uma denúncia, alguém do outro lado perderá um pai. É um momento de nuance moral que evidencia que a vida não é binária e que experiências traumáticas não têm soluções simples. Em contrapartida, é ao encontrar um gatinho abandonado que ela enxerga um raio de felicidade, direcionando seu carinho a algo mais frágil que ela naquele momento.

Sorry, Baby se constrói na empatia: vemos Agnes como alguém que carrega sofrimento, mas também humanidade e complexidade. Lydie, por sua vez, representa o olhar de quem observa e se preocupa, tentando compreender e apoiar sem invadir ou julgar. Já Gavin (Lucas Hedges), o vizinho que desenvolve uma relação afetiva com Agnes, é retratado com naturalidade e verossimilhança, encarnando formas de afeto contemporâneas sem artifícios. Entre diálogos belos e genuínos, a abordagem desperta identificação sem reduzir ninguém a arquétipos unidimensionais.

A narrativa em quatro capítulos, alternando diferentes momentos do tempo, exige atenção do espectador, mas oferece uma experiência emocional profunda. É um convite à introspecção: a história não termina com os créditos; ela permanece conosco, provocando reflexão sobre amizade, trauma e crescimento. Nesse aspecto, o filme se distancia de outra obra lançada este ano com temática semelhante no ambiente acadêmico — Depois da Caçada, de Luca Guadagnino. Enquanto o diretor italiano se apoia no suspense e no conflito moral, muitas vezes polarizando sobre assédio sexual, Sorry, Baby abraça a complexidade da experiência, construindo empatia e sugerindo um futuro de compreensão e resiliência.

O diálogo final entre Agnes e o bebê da amiga é emblemático, carregado de ternura e humanidade. É uma cena que resume o coração do filme: a vida segue, mesmo diante de traumas, e a amizade e a empatia tornam-se forças vitais. A beleza do filme está justamente na maneira como trata a dor sem reduzir ninguém a rótulos, mostrando que o caminho para lidar com experiências traumáticas é pessoal, multifacetado e cheio de nuances.

Com estreia mundial no Festival de Sundance, passagem pela Semana da Crítica no Festival de Cannes e quatro indicações ao Spirit Award, Sorry, Baby confirma sua importância e impacto no cinema contemporâneo. Eva Victor entrega uma obra autoral, sensível e profundamente humana, que equilibra a dureza da vida com a beleza da amizade e da resiliência. Poucos filmes contemporâneos tratam a dor com tanta honestidade — e, por isso mesmo, Sorry, Baby se torna marcante e uma estreia admirável.

Com distribuição da Mares/Alpha Filmes, Sorry, Baby estreia nos cinemas brasileiros no dia 11 de dezembro

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Letícia Alassë
Crítica de Cinema desde 2012, jornalista e pesquisadora sobre comunicação, cultura e psicanálise. Mestre em Cultura e Comunicação pela Universidade Paris VIII, na França e membro da Abraccine, Fipresci e votante internacional do Globo de Ouro. Nascida no Rio de Janeiro, mas desde 2019, residente em Paris, é apaixonada por explorar o mundo tanto geograficamente quanto diante da tela.
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