Filme assistido durante o Festival de Sundance 2024
Como um intruso que corrói sua mente, seu corpo e sua rotina, o luto em vida é o tipo de experiência que só se dimensiona quando vivida na pele. O constante peso da iminência da morte assombra, atormenta e sufoca. Nos deixando sempre em alerta, à espreita e à espera, ele é uma angústia diária por algo inevitável. Essa sufocante e tóxica compressão rege os dias, o humor e os ambientes. Uma dor tão mais dolorosa do que a difícil tarefa de superar o fim da vida, lidar com essa verdade antes mesmo dela se cumprir ainda traz um gosto mórbido e amargo para os lábios. É a saudade de algo que ainda não se foi, é a tristeza pelo fim que não chegou, é a vida perdendo sentido diante da morte. E de maneira delicada, sensível e apaixonante, Laura Chinn aborda toda essa complexa rede de sentimentos, fazendo de Suncoast uma das catarses mais poderosas do cinema recente.
Abrindo sua história para o mundo, ela dá voz aos gemidos inexprimíveis daqueles que um dia também enfrentaram de perto as fases mais dolorosas de um câncer cerebral em estágio terminal. Com a árdua tarefa de expressar claramente a dimensão dessa dor, a cineasta estreante se aventura por uma escrita visceral, explorando essa amálgama de sentimentos que percorrem a mente daqueles que assistem suas pessoas mais amadas deixarem o mundo. Com delicadeza e a sensibilidade de alguém que viveu todos os percalços de uma enfermidade incontrolável, ela traduz a história da sua própria família na narrativa de Kristine e Doris, acompanhando os dias que antecedem a morte do jovem Cody, um garoto acometido por um câncer cerebral.
Enquanto Kristine caminha debaixo do constante peso de ver seu primogênito morrer um pouco mais a cada dia, Doris é uma adolescente que viveu seus últimos seis anos cuidando de seu irmão doente. No auge de suas transformações hormonais e cercada por um contexto de riqueza oriunda da escola particular onde estuda, ela transita entre a culpa, a angústia, aflição e o desejo de seguir com sua vida. Ambas diante de seus próprios dilemas e frustrações mais íntimas – que poderiam soar egoístas para aqueles que jamais se viram nessa posição -, elas tentam navegar as turvas águas do luto enquanto se digladiam entre si. Tensão, amargura e ressentimentos marcam essa relação entre mãe e filha que, embora se amem muito, estão feridas demais para conseguir enxergar uma à outra em meio ao sofrimento inesgotável.
E proporcionando uma experiência extremamente profunda e sensível, Chinn faz de Suncoast uma carta de amor à sua família e de apoio àqueles que sofrem amando seus entes queridos enquanto cuidam deles em sua mais alta fragilidade. Entregando um roteiro elaborado que sabe muito bem trabalhar as inconsistências e inconstâncias de suas personagens sem torná-las mártires ou vilãs dentro de seu próprio luto, ela convida a audiência para uma catártica jornada sem pré-julgamentos. E mesmo correndo o risco de tornar suas protagonistas grandes algozes, ela faz questão de expor as camadas mais extensas do luto em vida, para que saibamos que não há jeito certo de sofrer a dor de quem amamos.
E nesse turbilhão de sentimentos onde algumas perguntas jamais são devidamente respondidas, conhecemos Laura Linney por uma nova ótica. Entregando a performance de sua vida, ela explora todas as versões dessa desesperada mãe e viúva, que dedicou quase toda sua vida para cuidar de seu filho doente. Sem saber como lidar com sua caçula, ela se esconde em sua dor, pressiona todos ao seu redor e vive em um estado de desespero que beira um colapso nervoso. Exalando uma tensão palpável, tamanha a riqueza de sua performance, a atriz nos presenteia com o melhor trabalho de sua carreira, nos carregando por suas inconstâncias e aflições emocionais. Suas lágrimas e sua fala sempre trêmula, mas decisiva, garantem um grau de sensibilidade singular à personagem, a ponto de nos tornar parte de seu sofrimento.
Nico Parker complementa Linney com precisão, como o retrato de uma adolescente incapaz de administrar todas as agruras de ser jovem, diante da finitude da vida de seu irmão mais velho. Negação, incompreensão e reticência fazem parte dessa performance poderosa, que só salienta o enorme talento da atriz. O veterano Woody Harrelson surge como a voz da razão, uma carismática figura paterna que carrega suas próprias bagagens, mas está sempre disposto a usá-las como instrumento de cura alheia. Com uma atuação sensível e doce, ele mostra uma faceta ainda mais despojada e relaxada. Como um respiro de sutileza e leveza, seu personagem é aqui o elo cômico da trama, o pequeno hiato entre a dor do luto na vida de Doris.
E assim, o drama navega pela tristeza, pela alegria e pela solidão de uma família tão forjada na dor. Nos dando o privilégio de provar o sabor da vida pela disfuncional e realista ótica de duas mulheres administrando suas respectivas fases de amadurecimento, o drama lançado em Sundance tem sabor agridoce, temperado por densas lágrimas que insistem em correr pelo nosso rosto, diante dessa poderosa narrativa. Um retrato honesto sobre o apego à vida e o medo da morte, Suncoast é ainda uma homenagem intimista feita pela cineasta Laura Chinn à sua família e se encerra docemente com um gostinho otimista de que – não importa o quanto tenhamos perdido -, sempre haverá um novo horizonte adiante.