Filme assistido durante o Festival de Sundance 2020
Resgatando o terror com uma certa irreverência e escolhas até mesmo peculiares, a Blumhouse tem se tornado a grande responsável por resgatar o gênero aos seus tempos de glória que – até então – residiam entre os anos 70 a 2000. E se apropriando de alguns dos contextos sócio culturais contemporâneos que têm regido o mundo, a produtora de Jason Blum cruzou novos limites ainda mais inusitados para o gênero, fazendo de Run Sweetheart Run uma produção gore peculiar que foge à regra em todos os sentimentos. Com elementos fantásticos que garantem o fator surreal à trama, o longa de Shana Feste é ainda uma crítica social sobre abuso sexual e racismo, em meio ao latente empoderamento feminino.
À primeira instância, Run Sweetheart Run aparenta ser mais um filme de terror da lista de infindáveis produções da Blumhouse, que poderiam muito bem ter uma passagem sólida nas telonas, porém efêmera. Mas de maneira inadvertida, o que poderia ser apenas um longa repleto de jumpscares e cenas intensas, se metamorfoseia em uma experiência surpreendentemente reflexiva, a respeito de como é sentir – literalmente na carne – o horror de ser uma mulher violada por outra pessoa em posição de poder. E aqui, Ella Balinska é uma jovem com cicatrizes de um relacionamento abusivo e que aceita um encontro às escuras com um homem rico e poderoso, amigo de seu chefe, vivido por Johan Philip Asbæk (Game of Thrones). No entanto, o que poderia ser uma noite apaixonante, se transforma em uma insana caçada, onde ela terá que ir até às últimas consequências para manter-se viva.
Na trama, pouco importa as origens de seu agressor. Inicialmente apresentado apenas como um charmoso homem de feições hipnotizantes, ele rapidamente se transforma em uma espécie de monstro (literalmente) quase imortal, que fareja o sangue das mulheres e se alimenta a partir dos abusos sexuais que comete, tendo apenas um critério para a escolha de suas vítimas: jovens e negras. E como alguém que transita com autoridade pelas ruas de Los Angeles, sem ser impedido de seus crimes, Asbæk é uma espécie de representação do patriarcado, viola os direitos e integridade das suas vítimas e escolhe suas presas de forma estratégica por uma razão genuinamente realista: Mulheres negras são tratadas com menor importância pelas autoridades norte-americanas. Errado ele não está.
E conforme o padrão do agressor é desenhado diante dos nossos olhos, o terror de Feste se desabrocha para a audiência, mostrando-se como de fato uma espetacular oportunidade de usar um gênero tão atípico para tratar sua temática social, fazendo da sua abordagem a cartada certeira para transformar sua trama em uma experiência visual e perceptiva realmente impactante. E embora você seja atraído a Run Sweetheart Run por ser um original Blumhouse, o que te faz permanecer diante das telas não são os sustos e a tensão bem equilibrada e escalonada, mas sim o recado da diretora para homens e mulheres.
Explorando com voracidade os perigos da perpetuidade do abuso de poder sobre mulheres e – principalmente – negras, o terror consegue aliar o fator entretenimento à um roteiro com premissa madura, brincando com o gênero como quem tem a pretensão de abrir um diálogo sério sobre como a mulher é vista quando abusada sexualmente – a ponto de ser ignorada e rejeitada por muitos que a cercam. Bem dirigido, com uma edição certeira que sabe desenvolver uma atmosfera macabra em torno da trama, Run Sweetheart Run dá o seu recado com agilidade e dinamismo sem ser óbvio demais e sem fugir da premissa básica da Blumhouse de produzir um bom horror que envolva suas audiências. Misturando temas tão diversos e conectando-os com destreza, a produção é uma bela surpresa regada por boas atuações e por aqueles fatídicos sustos que vão te tirar do lugar.