sexta-feira , 22 novembro , 2024

Crítica | Surrealismo e elegância se fundem na intrigante antologia animada ‘The House’, da Netflix

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Na mais nova antologia animada da Netflix, The House, um time de talentosos realizadores nos convida para conhecer os bizarros corredores e cômodos de um gigantesco casarão. Estendendo-se ao longo de três episódios, compilados em um longa-metragem de pouco mais de uma hora e meia, a produção, assinada por Enda Walsh, é definitivamente uma das mais estranhas de 2022 (no melhor sentido do termo) e um ótimo jeito de começar esse ano – reunindo acontecimentos arrepiantes e com reviravoltas chocantes para discorrer sobre temas de importância altíssima para os dias de hoje.

A verdade é que boa parte das investidas da gigante do streaming costumam falhar em cumprir com o que desejam – como visto na última dezena de obras de ação que pulularam em seu catálogo nos últimos meses. Em meio à luta constante em se manter firme frente ao crescente número de outras plataformas virtuais (principalmente a HBO Max e o Disney+), era apenas de se esperar que a constante renovação de seus títulos trilhasse um caminho um tanto quanto conturbado. Entretanto, precisamos comentar que, quando a Netflix e seu extenso time de colaboradores se sentam para pensar em como chocar os espectadores e os assinantes, normalmente somos agraciados com uma investida mágica, instigante e que nos leva a pensar sobre questões existenciais – como o recente ‘A Filha Perdida’, que promove análises sobre feminismo e maternidade.



Cada um dos três contos explora um lado da psique humana que é traduzido através de uma belíssima estrutura stop-motion: o primeiro deles acompanha a saga de uma família que, sofrendo duras críticas de parentes mais abastados, vê uma oportunidade de “subir na vida” ao ganhar um presente de um empreiteiro misterioso. Abandonando o cotidiano simplório que tinham, eles se mudam para o casarão titular e percebem que nem tudo é o que parece ser; entre refeições exuberantes e objetos de grande valia, a família não percebe que está, literalmente, se tornando parte da mobília, deixando para trás valores que sempre defenderam em prol de uma ambição desmedida – e uma realização tardia de que, às vezes, o luxo é uma faca de dois gumes. É nesse âmbito que a jovem Mabel (Mia Goth) e a irmã mais nova, Isobel, tentam recuperar um pouco da inocência para sobreviverem e conseguirem fugir dessa prisão sem grades.

A pretensão e o desejo são os temas que se repetem nas histórias da antologia, pinceladas com pulsões psicológicas e intimistas que refletem a atmosfera teatral dos enredos. A construção dramática de “And heard within, a lie is spun”, que abre a jornada, é apenas o princípio de uma afeição pelo surrealismo cinematográfico que remonta a clássicos do terror e do suspense, nunca, de fato, chegando à essência do medo, mas fomentando uma agridoce sensação de que confiar nas pessoas erradas pode ser um trajeto sem volta. E o que mais funciona é a brevidade das inflexões, que se desenrolam por pouco mais de meia hora.

Em “Then lost is truth that can’t be won”, evocativo título do segundo episódio, cabe à diretora Niki Lindroth von Bahr pegar elementos do cinema dos anos 1920 e 1930 para viajar no tempo e explorar uma trama aparentemente comum – que envolve um designer de interiores e arquiteto (dublado por Jarvis Cocker) que quer terminar a reforma da casa para vendê-la a algum cliente. A personalidade centrada do protagonista é mascarada por uma carência excessiva e uma necessidade de se provar, inclusive quando enfrenta contas atrasadas e ameaças de despejo. Assim como o conto anterior, as coisas desandam de forma brusca e são catalisadas com a chegada de um estranho casal (vividos por Yvonne Lombard e Sven Wollter) que se apropria da mansão e não quer mais sair de lá

Aqui, a ambição reencontra sua voz, mas reformulada com uma acepção de que, “se não pode vencer seus inimigos, junte-se a eles”. O personagem interpretado por Cocker é um rato civilizado que vive em uma sociedade que não o fornece qualquer tipo de amparo emocional; quando a normalidade a que está acostumado se desmantela à sua frente, ele se junta aos “inquilinos” que se apoderam do casarão e faz um retorno à involução, à barbaridade do mero parasitismo: ele passa a existir para satisfazer às demandas mais básicas de qualquer criatura, compreendendo que não pode fugir de seus instintos mais primitivos.

Por fim, “Listen again and seek the sun” é um ótimo desfecho por ir de encontro à ambientação pessimista-realista dos episódios anteriores. Aqui, acompanhamos a intransigente e frustrante jornada de Rosa (Susan Wokoma), uma gata que deseja terminar a reforma dos sonhos na casa, mesmo em meio a uma trágica inundação que a deixou presa lá dentro com dois outros hóspedes. Rosa representa a complexa faceta humana de não conseguir se livrar de bens materiais que não têm mais o que oferecer e que se tornaram obsoletos, demonstrando ser uma personagem extremamente apegada ao passado e cega para o que o futuro a aguarda. Não é até os momentos finais, em que ela se vê sozinha no meio do nada, que ela enfrenta o medo de sair da zona de conforto e navegar no desconhecido, recuperando o prazer da vida.

De certa maneira, a antologia não é livre de cometer alguns deslizes, como se deixar levar pelo excesso de simbolismos e por metáforas de difícil compreensão pelo público geral. Todavia, isso não é o suficiente para apagar a originalidade e a vivacidade com que a animação é construída – e a importância temática de que se vale para causar algum tipo de sensação nos espectadores.

A sensorialidade é um fator decisivo para que o longa cumpra com o que pretende – e, no momento em que percebemos o “verdadeiro potencial da casa” e como ela se ergue como a verdadeira protagonista dessa intrigante peripécia, a produção nos leva a lugares inimagináveis (e que não podem ser ocultados).

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Thiago Nollahttps://www.editoraviseu.com.br/a-pedra-negra-prod.html
Em contato com as artes em geral desde muito cedo, Thiago Nolla é jornalista, escritor e drag queen nas horas vagas. Trabalha com cultura pop desde 2015 e é uma enciclopédia ambulante sobre divas pop (principalmente sobre suas musas, Lady Gaga e Beyoncé). Ele também é apaixonado por vinho, literatura e jogar conversa fora.

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A verdade é que boa parte das investidas da gigante do streaming costumam falhar em cumprir com o que desejam – como visto na última dezena de obras de ação que pulularam em seu catálogo nos últimos meses. Em meio à luta constante em se manter firme frente ao crescente número de outras plataformas virtuais (principalmente a HBO Max e o Disney+), era apenas de se esperar que a constante renovação de seus títulos trilhasse um caminho um tanto quanto conturbado. Entretanto, precisamos comentar que, quando a Netflix e seu extenso time de colaboradores se sentam para pensar em como chocar os espectadores e os assinantes, normalmente somos agraciados com uma investida mágica, instigante e que nos leva a pensar sobre questões existenciais – como o recente ‘A Filha Perdida’, que promove análises sobre feminismo e maternidade.

Cada um dos três contos explora um lado da psique humana que é traduzido através de uma belíssima estrutura stop-motion: o primeiro deles acompanha a saga de uma família que, sofrendo duras críticas de parentes mais abastados, vê uma oportunidade de “subir na vida” ao ganhar um presente de um empreiteiro misterioso. Abandonando o cotidiano simplório que tinham, eles se mudam para o casarão titular e percebem que nem tudo é o que parece ser; entre refeições exuberantes e objetos de grande valia, a família não percebe que está, literalmente, se tornando parte da mobília, deixando para trás valores que sempre defenderam em prol de uma ambição desmedida – e uma realização tardia de que, às vezes, o luxo é uma faca de dois gumes. É nesse âmbito que a jovem Mabel (Mia Goth) e a irmã mais nova, Isobel, tentam recuperar um pouco da inocência para sobreviverem e conseguirem fugir dessa prisão sem grades.

A pretensão e o desejo são os temas que se repetem nas histórias da antologia, pinceladas com pulsões psicológicas e intimistas que refletem a atmosfera teatral dos enredos. A construção dramática de “And heard within, a lie is spun”, que abre a jornada, é apenas o princípio de uma afeição pelo surrealismo cinematográfico que remonta a clássicos do terror e do suspense, nunca, de fato, chegando à essência do medo, mas fomentando uma agridoce sensação de que confiar nas pessoas erradas pode ser um trajeto sem volta. E o que mais funciona é a brevidade das inflexões, que se desenrolam por pouco mais de meia hora.

Em “Then lost is truth that can’t be won”, evocativo título do segundo episódio, cabe à diretora Niki Lindroth von Bahr pegar elementos do cinema dos anos 1920 e 1930 para viajar no tempo e explorar uma trama aparentemente comum – que envolve um designer de interiores e arquiteto (dublado por Jarvis Cocker) que quer terminar a reforma da casa para vendê-la a algum cliente. A personalidade centrada do protagonista é mascarada por uma carência excessiva e uma necessidade de se provar, inclusive quando enfrenta contas atrasadas e ameaças de despejo. Assim como o conto anterior, as coisas desandam de forma brusca e são catalisadas com a chegada de um estranho casal (vividos por Yvonne Lombard e Sven Wollter) que se apropria da mansão e não quer mais sair de lá

Aqui, a ambição reencontra sua voz, mas reformulada com uma acepção de que, “se não pode vencer seus inimigos, junte-se a eles”. O personagem interpretado por Cocker é um rato civilizado que vive em uma sociedade que não o fornece qualquer tipo de amparo emocional; quando a normalidade a que está acostumado se desmantela à sua frente, ele se junta aos “inquilinos” que se apoderam do casarão e faz um retorno à involução, à barbaridade do mero parasitismo: ele passa a existir para satisfazer às demandas mais básicas de qualquer criatura, compreendendo que não pode fugir de seus instintos mais primitivos.

Por fim, “Listen again and seek the sun” é um ótimo desfecho por ir de encontro à ambientação pessimista-realista dos episódios anteriores. Aqui, acompanhamos a intransigente e frustrante jornada de Rosa (Susan Wokoma), uma gata que deseja terminar a reforma dos sonhos na casa, mesmo em meio a uma trágica inundação que a deixou presa lá dentro com dois outros hóspedes. Rosa representa a complexa faceta humana de não conseguir se livrar de bens materiais que não têm mais o que oferecer e que se tornaram obsoletos, demonstrando ser uma personagem extremamente apegada ao passado e cega para o que o futuro a aguarda. Não é até os momentos finais, em que ela se vê sozinha no meio do nada, que ela enfrenta o medo de sair da zona de conforto e navegar no desconhecido, recuperando o prazer da vida.

De certa maneira, a antologia não é livre de cometer alguns deslizes, como se deixar levar pelo excesso de simbolismos e por metáforas de difícil compreensão pelo público geral. Todavia, isso não é o suficiente para apagar a originalidade e a vivacidade com que a animação é construída – e a importância temática de que se vale para causar algum tipo de sensação nos espectadores.

A sensorialidade é um fator decisivo para que o longa cumpra com o que pretende – e, no momento em que percebemos o “verdadeiro potencial da casa” e como ela se ergue como a verdadeira protagonista dessa intrigante peripécia, a produção nos leva a lugares inimagináveis (e que não podem ser ocultados).

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Em contato com as artes em geral desde muito cedo, Thiago Nolla é jornalista, escritor e drag queen nas horas vagas. Trabalha com cultura pop desde 2015 e é uma enciclopédia ambulante sobre divas pop (principalmente sobre suas musas, Lady Gaga e Beyoncé). Ele também é apaixonado por vinho, literatura e jogar conversa fora.

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