Perspicaz em seus diálogos e sempre emanando um enorme eruditismo por onde passa, Lydia Tár é uma força criativa muito bem articulada, que se desabrocha em tela como o mito da Esfinge. Inicialmente uma mulher voraz, de argumentação coerente e ácida, ela se desfalece ao longo de quase três horas de filme como a icônica figura grega. Deixando um rastro de destruição e devorando aqueles que a cercam, ela é um retrato quase metalinguístico do que Hollywood se tornou nos últimos anos com o surgimento do problemático movimento #MeToo. E TÁR, novo drama do cineasta Todd Field, é uma espécie de alegoria a uma indústria marcada por poder, influência e egolatria. Fugindo do óbvio, o longa faz de seus densos monólogos uma experiência cinematográfica inesperadamente angustiante.
Sempre pautado em conversas exageradamente catárticas e um tanto performáticas, TÁR nos causa uma certa estranheza em seus primeiros minutos. Entre diálogos sempre muito polidos e reflexões sociais e artísticas tão específicas, Field coloca sua originalidade à prova, correndo o risco de perder a atenção da audiência que talvez não esteja disposta a uma proposta tão direcionada para a música clássica. Mas com a ajuda de Cate Blanchett, o diretor e roteirista facilmente consegue cruzar os preconceitos iniciais, nos entregando um drama que nos consome muito mais do que o esperado.
Trazendo a história dessa maestro que hoje vive o auge de uma admirável carreira, TÁR é uma experiência sinestésica onde a música erudita e o cinema cult se encontram proporcionando algo diferente para o público. Conforme acompanhamos a artista homônima a poucos dias de sua mais aguardada performance com a filarmônica alemã, vemos toda sua cautelosa jornada desmoronar com escândalos assombrosos que envolvem uma série diversa de abusos. E entre a pressão de garantir que sua arte e sua imagem permaneçam imaculadas e os irrefutáveis fatos, uma das artistas mais intocáveis se vê diante de um beco sem saída.
E essa tumultuada jornada, marcada por tantos diálogos que poderiam muito bem ser cansativos de tão pedantes, nos toma pela mão de forma arrebatadora. Com Cate Blanchett em sua melhor performance até o momento (se é que é possível realmente criar um paralelo justo com seu passado), TÁR é o cinema arte em sua mais alta qualidade, que nos chama para dentro da narrativa. Com um roteiro inteligente e um pequeno catálogo de brilhantes performances, as extensas páginas de conversas acompanhadas por um café ou cercadas por um anfiteatro se transformam em momentos de angústia e aflição para a audiência. E com a ajuda de Nina Hoss e Noémie Merlant, como duas excelentes coadjuvantes, o que poderia ser um filme blasé se torna um drama eficiente sobre uma mulher que realmente aparenta ser a personificação do mito da Esfinge.
E Blanchett nos hipnotiza. Com trejeitos um pouco mais masculinizados, que vez outra deixam escapar uma certa feminilidade, ela brilha a todo momento. Com uma linguagem corporal mais classuda, sempre emanando a didática de um maestro em seus gestos, ela faz tudo parecer absolutamente natural e leve. Da insensatez e frieza ao mais puro fascínio pelas notas musicais, ela faz de Lydia Tár um experimento social a ser avaliado e julgado pela audiência. E exibindo um alemão admirável ao longo de 2h38 de filme, a vencedora do Oscar nos lembra do quão única ela é capaz de ser a cada nova performance.
Com uma direção padrão que ganha um conceito maior já pelo final do seu segundo ato, TÁR é um drama excelente sobre relações humanas, abuso de poder e de influência e até mesmo sobre o famoso nepotismo. Demonstrando de forma simbólica e bem rápida o contraste de gerações, o filme não se preza a explicar os conceitos e referências culturais que cercam a música clássica, podendo deixar muitos à deriva. Mas ainda sim, fazendo uma excelente espiral decadente de sua própria protagonista, a produção nos convida para a curiosidade, instiga nossos instintos e nos deixa insaciáveis. E sob um final irônico e brilhante, Field ainda consegue entregar muito mais do que esperamos, tornando TÁR uma pequena sátira de uma mulher que, embora flertasse com todas as cartilhas progressistas, é de fato um escárnio da assustadora contemporaneidade.