Os contrastes entre o tradicional e o contemporâneo, as luzes que penetram as janelas e revelam a intimidade de uma vida exposta aos holofotes, as calças engomadas, as jóias cintilantes, os vestidos suntuosos. A segunda temporada de The Crown reabre o cobiçado livro sobre a história da família real britânica, nos convidando a mergulhar com profundidade ainda maior na complexa e árdua responsabilidade que a hipnotizante coroa cravejada de diamantes carrega em sua beleza.
Se na primeira temporada nos sentimos como espectadores novos do espetáculo da vida, a partir da inesperada despedida do Rei George VI e da iminente chegada da jovem Elizabeth ao trono inglês, o novo ciclo recebe sua audiência com a tranquilidade de se estar em casa. Sem qualquer cerimônia introdutória à trama, nos encontramos novamente na intimidade, como se estivéssemos ali ininterruptamente. Diante de Lilibeth e Filipe, nos encontramos no silêncio privativo de um ambiente desconfortável e prestes a se romper em um duro diálogo. Nós já sabemos do que se trata, afinal, já conhecemos o casal real muito bem.
Em seu segundo ano à frente da produção, Peter Morgan novamente nos mostra a que veio. Um exímio historiador, fascinado pela política e por sua coerência institucional dentro da formação de uma nação, ele usa sua experiência consolidada nas obras O Último Rei da Escócia (2006), Frost/Nixon (2008) e A Rainha (2006), para nos levar para a mente de Elizabeth. Se aprofundando em seus dilemas pessoais e relacionais, descobrimos com propriedade algumas antigas fofocas Reais que permearam a vida social inglesa nas últimas décadas, à medida que a história que bate à porta invade a intimidade do particular, se mesclando na conflitante jornada de quem só queria ser comum, mas é submetida a ser extraordinária.
Além das polêmicas suposições sobre a vida dupla do Duque de Edimburgo – que todos já sabiam bem que viria à tona -, a nova temporada estrutura a linha temporal dos fatos históricos com maestria. Retomando a trama a partir de uma crise política, uma narrativa riquíssima que emana conhecimento empírico e a privacidade de uma vida observada por todos os ângulos ganha força ainda maior. Desenvolvendo os assuntos emocionais e institucionais em ordem cronológica e até mesmo invertida, Morgan brinca com a mente da audiência. Constrói princípios morais nela, à medida que os desconstrói com sutileza e delicadeza, através de atuações simbólicas que revelam o caráter de seus personagens.
A joia da coroa da Netflix possui em si um brilhantismo inigualável. Se aliando à excepcional – e por hora tumultuada – House of Cards, The Crown se constrói de forma consistente. A partir de um roteiro bem executado e um elenco escolhido a dedo (Claire Foy novamente impressiona por sua atuação), a produção desabrocha em uma estética belíssima, que recria os gabinetes institucionais em cores frias e amadeiradas e o vigor impresso em tons quentes e aveludados do palácio, compõem um design de produção impecável, e se estende ao figurino. Recompondo milimetricamente peças chaves usadas pela rainha e por seus familiares em momentos clínicos, a produção conta uma história oral sobre a moda imprensa nos principais membros da família, pontuando circunstâncias clínicas marcadas por um figurino que – enquanto aos olhos de um espectador desatento não significariam nada, revelam seu valor imensurável não apenas para a historicidade da Coroa, mas também para a personalidade de cada qual.
Apresentando uma série de novos personagens históricos, alguns esquecidos pelo tempo, outros ainda vivos na memória recente, The Crown volta à grade de programação da Netflix com um grau de riqueza ainda maior. Com uma direção que contrasta a grandeza da rainha, com a superior imensidão de seu poder ‘divino’, os 10 episódios da nova temporada passam em uma leveza surpreendente, à medida que nos colocam na extremidade do sofá a cada novo capítulo. Fiel à verdade dos fatos e especulativa quantos aos inúmeros rumores, a produção original encanta os olhos, angustia o coração e acalenta a alma com uma das histórias reais mais impressionantes dos últimos dois séculos.