Filme assistido durante o Festival de Toronto 2019
Carroll Shelby e Ken Miles foram unidos pelas circunstâncias de uma salivante rivalidade sócio econômica liderada pelas gigantes Ford Motors e Ferrari. Entre disputas por velocidade e por alta performance nas pistas de corrida, eles viram sua turbulenta, porém surpreendente amizade ser usada, a ponto de se transformar na essência da construção do veloz carro GT40, que dominou o pódio da 24 Horas de Le Mans, entre os anos 1966 e 1969. E essa história, que talvez seja distante demais da maior parte do público brasileiro, não precisa ser dissecada e apreciada com exatidão para garantir uma experiência cinematográfica vibrante. Tal como Ron Howard assim o fez em Rush: No Limite da Emoção, James Mangold resgata um hiato do passado das corridas de alta performance em Ford v Ferrari de maneira poética e envolvente, em uma narrativa que deixa – de certa forma – a suntuosidade que cerca esse meio esportivo elitista, para contar a história de uma tenra parceria, fruto dos interesses financeiros de um empresário soberbo.
A cinebiografia de Mangold é mais uma surpresa de sua peculiar filmografia, que passeia entre a comédia romântica clichê Kate & Leopold, passa pela poderosa biografia Johnny & June e faz uma profunda pausa dramática em Logan, uma das melhores adaptações dos quadrinhos da atualidade. E aqui, ele faz um recorte histórico, optando mais por trazer às telonas uma trama que explora o encontro de propósitos de duas figuras bem aquéns uma da outra, do que uma história que foque na trajetória de Henry Ford II à suprema ganância e monopólio. Matt Damon e Christian Bale dão vida a essa dinâmica relacional, que se desenrola nas telas com intensidade e – ironicamente – uma peculiar doçura. Como um encaixe perfeito, ambos se completam em seus raciocínios e diálogos e é notável o quão bem eles se dão dentro e fora das telas.
Mas, como é de se esperar, naturalmente Bale cresce como a versão caricata de Ken Miles, repetindo aquelas insanas transformações que fazem nossos olhos vidrarem em cada um de seus movimento quando em cena. Seu corpo esguio e rosto um tanto cadavérico revelam traços semelhantes ao do personagem da vida real. Sua postura comprometida parece não suportar sua fina estrutura e seu sotaque arrastado revelam suas origens inglesas de maneira mais marcada. De fala um pouco embolada, ele personifica o corredor com leveza, precisão e facilidade, mais uma vez mostrando a força de suas caracterizações. Nos levando pela jornada de Ford v Ferrari por sua perspectiva, ele se destaca de Damon, que está ótimo em sua atuação, mas humanamente incapaz de entregar aquilo que só Bale sabe muito bem fazer.
Ainda assim, isso de forma alguma diminui o impacto eletrizante que é observar a dupla de vencedores do Oscar contar essa história muito famosa, porém impressionantemente desconhecida de muitos de nós. Por meio dessa dinâmica relacional, os personagens adjacentes vividos por Caitriona Balfe, Noah Jupe, Jon Bernthal e Josh Lucas orbitam ao seu redor, ajudando a dar sustentação à trama co-escrita por Jez Butterworth, John-Henry Butterworth e Jason Keller. Com um roteiro que se desenvolve a partir desta cativante amizade, nascida de um autêntico objetivo em comum, a cinebiografia dramática também não perde tempo em mostrar a que veio, tentando se construir de maneira madura e até mesmo autoral (ainda que falhe nesse último aspecto), à medida que entrega uma obra que hipnotiza os olhos sedentos por velocidade.
Com a direção se destacando nas cenas de ação, Mangold mostra a versatilidade de sua filmografia ao encarar a cinebiografia como também um espetáculo visual capaz de suprir o afago de um amante de boas tomadas eletrizantes. Em Ford v Ferrari, os testes de alta performance nas pistas de corrida se transformam nas oportunidades ideais de explorar também uma bela fotografia, com o cineasta percorrendo seu vasto campo de captura a partir da exploração de ângulos diversos. Ora ele destaca as curvas feitas pelos carros, intercalando-as com transições que ainda visam capturar as emoções e sensações dos seus personagens. E com muito dinamismo, a direção envolve o público nas cenas de ação, concentrando com habilidade toda a tensão, intensidade e adrenalina que os takes pedem, trazendo a audiência para dentro da produção. Visualmente belo e dramatizado de maneira simbólica e até mesmo sutil, o longa é um belo, ainda que imperfeito, retrato de uma impactante história real.