Filme Assistido durante o Festival de Toronto 2019
Um dos momentos mais delicados da história mundial, o Nazismo e a trajetória de Hitler costumam render boas narrativas simbólicas emocionais. Sempre em tons mais sóbrios em paletas de cores frias, essas produções exploram as tonalidades de cinza como uma percepção estética de identificar a profundidade e o peso da história a ser contada. E ver a temática virando piada talvez seja uma das rotas mais inusitadas escolhidas em Hollywood. Uma alternativa de caráter duvidoso, se arriscar a tirar onda – sem o humor negro – de uma tragédia sem precedentes pode ser um tiro no pé. Ainda assim, Taika Waititi desafia nossa percepção de certo e errado, nos levando a Jojo Rabbit, uma comédia anti-ódio que desperta no público a doce e inocente percepção infantil sobre a vida, à medida que confronta os padrões hollywoodianos com uma trama cativante, doce e – incrivelmente – responsável a cada riso provocado.
Empolgado em poder participar de seu primeiro acampamento nazista, Jojo (Roman Griffin Davis) não tem a mínima noção do que o líder de seu país de fato representa. Como um garotinho de apenas 10 anos que busca um referencial, ele se inspira na determinação do chefe de Estado, devaneia em seus pensamentos e tem o próprio Hitler como seu melhor amigo imaginário, alguém que parece ir além do fruto da sua imaginação, tendo suas próprias argumentações e percepções. Sua mãe, Rosie (Scarlett Johansson), tenta desviá-lo dos princípios demoníacos do Nazismo com sutileza e discrição. Militante anti-regime, ela já se torna o primeiro contraste dentro de uma trama que corre todos os seus atos com inúmeros confrontamentos, feitos com doçura, a fim de que sejam absorvíveis pela audiência da mesma maneira que uma pequena criança compreenderia.
Nesse contexto, Jojo Rabbit faz uma sátira ao regime nazista, transformando o próprio Hitler em uma piada que jamais deveria ter sido levada a sério. Um tanto chiliquento e cheio de maneirismos, ele é uma caricatura divertida sem soar ofensiva às vítimas do holocausto. Como parte da criação da mente de uma criança, sua doentia complexidade vai apenas a um certo limite, exatamente até o pouco conhecimento de mundo que o protagonista homônimo possui sobre seu líder e sobre a vida em sim. Apresentado-o de forma diminuída, a versão do vilão da vida real – vivida hilariamente por Taika Waititi – promove o riso com naturalidade e intensidade. Seu comportamento, muitas vezes infantilizado, é um retrato quase genuíno do chefe político, que aqui também é visto como um louco inconsequente, que tenta se apropriar da inocência de um garoto a fim de aprisioná-lo nos mesmos demônios que o criaram.
E por meio de uma estética colorida, repleta de cores quentes e vivas, Waititi transforma uma sátira que teria tudo para ser de mau gosto em uma fábula apaixonante. Ao focar sua narrativa em um grupo de crianças que possui as mesmas ambições pueris das de Jojo, o longa transforma a narrativa em uma experiência imersiva e divertida, trazendo a famigerada história do Nazismo por uma paleta que inspira leveza, não por desacreditar do valor histórico social desse período, mas por compreender que é possível observá-lo por uma ótica – genuinamente – jamais usada nos cinemas. Como um cineasta que também é judeu, o diretor se apropria de suas raízes como um mecanismo de se consolidar como autoridade no ato de contar a trama, o que funciona com brilhantismo. Explorando a luz natural com precisão, a narrativa faz um belo contraste com o próprio gênero onde está inserida, dosando a dramaticidade a partir da caracterização de seus protagonistas infantis. Com uma bela direção de fotografia, Jojo Rabbit também se destaca nas cenas em câmera lenta, em tomadas que congelam o tempo, conferindo uma sensação de grandiosidade ao protagonista, à medida que inspira um sentimento de perpetuidade ao momento flagrado – contribuindo diretamente para a construção humorística do filme.
Entre cortes rápidos e tomadas que vez ou outra (quase) centralizam seus personagens no cenário, a produção ainda nos remete à estética autoral de Wes Anderson, como se até mesmo Waititi desejasse prestar uma singela homenagem ao peculiar e criativo cineasta. A caracterização dos singulares e divertidamente antagônicos personagens de Sam Rockwell e Rebel Wilson é um pequeno reflexo da conceitualização dos filmes do diretor em questão e vagamente nos passam um referencial saudosista. Essa escolha conceitual ainda se encaixa com perfeição dentro da narrativa, engrossando a premissa satírica da trama, tornando-a mais encorpada e factível. Como um conjunto completo, Jojo Rabbit se torna hilário e cativante por acertar cuidadosamente em cada aspecto técnico e emocional de sua narrativa, entregando um filme que não tenta fazer piada de uma tragédia terrível, mas de fato busca um olhar mais simbólico e delicado de um período que sempre permanecerá como um pavoroso hiato da história da humanidade.
Irreverente e envolvente, a comédia dramática é inspiradora ao apresentar um protagonista infantil capaz de uma maturidade muito maior daquela que os próprios adultos amam se gabar. Trazendo uma trama que evolui a partir do crescimento emocional de seu personagem principal, ela explora o Nazismo e a trajetória de Hitler pela leveza da percepção infantil. E ainda fazendo justiça à comunidade judaica, o longa sabe o momento certo de adentrar com a veracidade dos horrores do regime político, sabendo – de maneira quase inexplicável – manter a doçura em meio ao amargor da Segunda Guerra Mundial. Com uma trilha sonora versátil que passeia para 30 anos à frente de seu tempo, em versões alemãs de The Beatles, Ramones e David Bowie, Jojo Rabbit é a pureza do cinema de guerra, em um conto que já conquistou a Escolha da Audiência no Festival de Toronto 2019 e pode muito bem conquistar o Oscar 2020.