quinta-feira , 21 novembro , 2024

Crítica | ‘Todo Dia a Mesma Noite’ age com cautela e respeito acerca da tragédia da Boate Kiss

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No dia 27 de janeiro de 2013, uma das maiores tragédias nacionais acontecia na cidade de Santa Maria, no Rio Grande do Sul: um incêndio criminoso se apossou da Boate Kiss e arrancou a vida de 242 pessoas, ninguém foi, de fato, preso ou responsabilizado, mesmo com diversas provas apontando a irresponsabilidade tanto dos órgãos públicos quanto dos nomes por trás da estruturação da casa noturna. Em 2017, a jornalista investigativa Daniela Arbex lançou um livro narrando os acontecimentos do desastre e trazendo depoimentos inéditos dos sobreviventes e dos pais das vítimas, auxiliando na denúncia da negligência por parte dos promotores e fornecendo maior visibilidade ao caso.

Agora, tanto o acontecimento quanto o romance de não-ficção são levados à Netflix através da minissérie Todo Dia a Mesma Noite. Era apenas questão de tempo até a história ser adaptada em uma forma dramatizada – e tinha todos os elementos para cair nas fórmulas do gênero true crime (que agora vem encontrando espaço em solo brasileiro). Mas o resultado rema contra a nossa maré de expectativa e transforma-se em uma dolorosa homenagem aos jovens assassinados na Boate Kiss, sem se valer da espetacularização da catástrofe em questão e tomando a cautela necessária para entregar exatamente o que promete: uma perspectiva humana de uma mancha na história do país.



Ao contrário do que poderíamos esperar, a produção não pretende narrar os eventos anteriores que culminaram na fatalidade – afinal, como não houve um resultado sólido desde aquela época, não faria sentido analisar o que aconteceu antes. Logo, o primeiro episódio começa horas antes da tragédia, apresentando os protagonistas e coadjuvantes e de que forma a vida de cada um deles mudou em questão de segundos. E aqui, discorro o ótimo trabalho das diretoras Júlia Rezende e Carol Minêm, que unem forças não para utilizar das mágoas e dos traumas para ganhar visualizações ou dinheiro, mas para garantir que toda a angústia e o medo sejam sentidos pelo espectador. Desde os primeiros minutos, sabemos o que vai acontecer e nos sentimos enclausurados em um labirinto sem saída, acompanhados por uma frenética montagem e um jogo de luzes que atordoa e que tenta, ao máximo, refletir a realidade dos que faleceram naquela fatídica madrugada.

E, enquanto vários poderiam imaginar um foco maior na desgraça em si, a ideia aqui é fornecer voz e palco para, principalmente, os pais dos jovens. O incêndio é a força-motriz de uma congregação de pessoas que clama por justiça e que, uma década mais tarde, é obrigada a entrar e sair de tribunais esperando uma decisão que dê paz a eles e aos falecidos. Nesse quesito, a série funciona muito bem: apoiando-se na canetada cirúrgica de Arbex e no roteiro de Gustavo Lipsztein, o que temos é uma exploração de corrupção e incúria que se transforma em um drama legal movido a cenas de cortar o coração e de arrancar lágrimas do começo ao fim.

O elenco traz nomes como Thelmo Fernandes, Débora Lamm, Bianca Byington, Paulo Gorgulho e vários outros atores e atrizes estelares que fazem um sólido trabalho – ainda que alguns diálogos superexpostos tornem as performances um tanto quanto artificiais. Apesar disso e de breves equívocos técnicos, há um trabalho primoroso de foreshadowing evocado na primeira cena do piloto e que dita o tom do enredo e de como devemos compreender os episódios. A fotografia navega entre uma felicidade estonteante de cores quentes que logo dá espaço para o caos e para uma melancolia constante e justificável, pincelado pelos tons frios do azul que entram em conflito com as emoções à flor da pele. Uma das cenas de maior impacto é, sem dúvida alguma, o momento em que Ricardo (Gorgulho) e Lívia (Raquel Karro) chegam à Boate e correm pelo estacionamento para procurar o carro do filho – eventualmente descobrindo que ele estava na casa noturna e cedendo a uma constatação derradeira e dilacerante.

O grande mérito da minissérie é conseguir não se apoiar em imagens chocantes ou em explicitações condenáveis dos mortos, e sim utilizar os artifícios que lhe são dados para apostar fichas nas eternas consequências – ou seja, na desestabilização dos familiares, na falta de impunidade e na óbvia conivência do próprio Estado a uma calamidade sem precedentes. E, no final das contas, não podemos deixar de ficar comovidos com uma retratação fiel de pessoas que continuam a sofrer pela falta de aparato governamental e pela agridoce fé de que, em algum momento, isso irá mudar.

Todo Dia a Mesma Noite é uma potente investida da Netflix que, não obstante as evidentes falhas, cumpre com o que quer mostrar – uma recontagem dos fatos através de uma humanizadora e bem-vinda exploração do incêndio da Boate Kiss. Dez anos depois, espera-se a justiça e, como apontado pelo frame final da obra, exaltamos a memória das vítimas por justiça e pela promessa de que isso nunca mais se repita.

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Thiago Nollahttps://www.editoraviseu.com.br/a-pedra-negra-prod.html
Em contato com as artes em geral desde muito cedo, Thiago Nolla é jornalista, escritor e drag queen nas horas vagas. Trabalha com cultura pop desde 2015 e é uma enciclopédia ambulante sobre divas pop (principalmente sobre suas musas, Lady Gaga e Beyoncé). Ele também é apaixonado por vinho, literatura e jogar conversa fora.

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Agora, tanto o acontecimento quanto o romance de não-ficção são levados à Netflix através da minissérie Todo Dia a Mesma Noite. Era apenas questão de tempo até a história ser adaptada em uma forma dramatizada – e tinha todos os elementos para cair nas fórmulas do gênero true crime (que agora vem encontrando espaço em solo brasileiro). Mas o resultado rema contra a nossa maré de expectativa e transforma-se em uma dolorosa homenagem aos jovens assassinados na Boate Kiss, sem se valer da espetacularização da catástrofe em questão e tomando a cautela necessária para entregar exatamente o que promete: uma perspectiva humana de uma mancha na história do país.

Ao contrário do que poderíamos esperar, a produção não pretende narrar os eventos anteriores que culminaram na fatalidade – afinal, como não houve um resultado sólido desde aquela época, não faria sentido analisar o que aconteceu antes. Logo, o primeiro episódio começa horas antes da tragédia, apresentando os protagonistas e coadjuvantes e de que forma a vida de cada um deles mudou em questão de segundos. E aqui, discorro o ótimo trabalho das diretoras Júlia Rezende e Carol Minêm, que unem forças não para utilizar das mágoas e dos traumas para ganhar visualizações ou dinheiro, mas para garantir que toda a angústia e o medo sejam sentidos pelo espectador. Desde os primeiros minutos, sabemos o que vai acontecer e nos sentimos enclausurados em um labirinto sem saída, acompanhados por uma frenética montagem e um jogo de luzes que atordoa e que tenta, ao máximo, refletir a realidade dos que faleceram naquela fatídica madrugada.

E, enquanto vários poderiam imaginar um foco maior na desgraça em si, a ideia aqui é fornecer voz e palco para, principalmente, os pais dos jovens. O incêndio é a força-motriz de uma congregação de pessoas que clama por justiça e que, uma década mais tarde, é obrigada a entrar e sair de tribunais esperando uma decisão que dê paz a eles e aos falecidos. Nesse quesito, a série funciona muito bem: apoiando-se na canetada cirúrgica de Arbex e no roteiro de Gustavo Lipsztein, o que temos é uma exploração de corrupção e incúria que se transforma em um drama legal movido a cenas de cortar o coração e de arrancar lágrimas do começo ao fim.

O elenco traz nomes como Thelmo Fernandes, Débora Lamm, Bianca Byington, Paulo Gorgulho e vários outros atores e atrizes estelares que fazem um sólido trabalho – ainda que alguns diálogos superexpostos tornem as performances um tanto quanto artificiais. Apesar disso e de breves equívocos técnicos, há um trabalho primoroso de foreshadowing evocado na primeira cena do piloto e que dita o tom do enredo e de como devemos compreender os episódios. A fotografia navega entre uma felicidade estonteante de cores quentes que logo dá espaço para o caos e para uma melancolia constante e justificável, pincelado pelos tons frios do azul que entram em conflito com as emoções à flor da pele. Uma das cenas de maior impacto é, sem dúvida alguma, o momento em que Ricardo (Gorgulho) e Lívia (Raquel Karro) chegam à Boate e correm pelo estacionamento para procurar o carro do filho – eventualmente descobrindo que ele estava na casa noturna e cedendo a uma constatação derradeira e dilacerante.

O grande mérito da minissérie é conseguir não se apoiar em imagens chocantes ou em explicitações condenáveis dos mortos, e sim utilizar os artifícios que lhe são dados para apostar fichas nas eternas consequências – ou seja, na desestabilização dos familiares, na falta de impunidade e na óbvia conivência do próprio Estado a uma calamidade sem precedentes. E, no final das contas, não podemos deixar de ficar comovidos com uma retratação fiel de pessoas que continuam a sofrer pela falta de aparato governamental e pela agridoce fé de que, em algum momento, isso irá mudar.

Todo Dia a Mesma Noite é uma potente investida da Netflix que, não obstante as evidentes falhas, cumpre com o que quer mostrar – uma recontagem dos fatos através de uma humanizadora e bem-vinda exploração do incêndio da Boate Kiss. Dez anos depois, espera-se a justiça e, como apontado pelo frame final da obra, exaltamos a memória das vítimas por justiça e pela promessa de que isso nunca mais se repita.

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