Filme assistido na versão remota do Festival de Tribeca 2020
A densa expressividade da arte é o que a torna um dos mecanismos mais cruciais na luta de desigualdades sócio raciais. Bem muito antes da grupo de rap NWA relatar os horrores, as pressões, mazelas e consequências de uma vida subjugada ao gueto e seus estereótipos, a música já era um diário bem aberto de coisas que as palavra apenas ditas – e não cantadas – eram incapazes de expressar. E no documentário Hydration, o produtor musical e consagrado artista Pharrell Williams leva os amantes da música (principalmente black) para as entranhas do seu visionário festival de música Something in The Water, que transformou uma comunidade inteira quanto ao uso de violência policial empregada em jovens negros, ajudando a redefinir a forma como a sociedade enxerga a juventude local, à medida que ainda curou as feridas de um violento e sangrento passado deixado por outro evento musical.
Aqui, entre erros e acertos técnicos, Pharrell leva a audiência para uma rápida jornada onde ele, como um músico negro crescido em Virginia Beach, decide voltar às suas raízes e contribuir para o desenvolvimento sociocultural da cidade, resgatando seu valor artístico. Aliando o simbolismo da água a uma profunda necessidade de devolver o vigor à comunidade traumatizada pela violência durante um festival de música realizado nos anos 80, o vencedor do Grammy Awards se une a gestores públicos, líderes religiosos e uma série de consagrados artistas, a fim de resgatar a arte como parte sine qua non da sociedade. Provando que a cultura pode mudar a forma como as pessoas se relacionam entre si, Hydration é um confronto quase ideológico sobre como o mundo mais do que nunca precisa da expressividade artística para manter a qualidade de vida de seu povo.
Com os takes musicais bem dirigidos, Hydration em alguns momentos se assemelha a um documentário amplamente musical. Explorando a arte expressa dentro e fora dos palcos em meio a jogos de luz, sombras e linguagem corporal, o longa dirigido por Mimi Valdés se destaca quando as tomadas são focadas nas performances de artistas como Missy Elliott, Jay Z, entre outros. No entanto, tem dificuldades de elencar seus entrevistados de forma mais estratégica, ao deixá-los – certas vezes – um tanto deslocados e com pouca informação para aqueles que dominam pouco ou quase nada do cenário musical contemporâneo.
Errando em um aspecto tão desnecessário, Hydration traz boas entrevistas, mas esquece do básico: apresentar seus entrevistados em legendas, inserindo o público na experiência projetada. Tratando o seu público com se todos fossem naturalmente habituados ao contexto trazido às telas, o documentário funciona bem na trajetória de sua narrativa, mas peca por não conduzir sua audiência pouco envolvida com a música com mais precisão em pulso firme. Em alguns momentos, o longa perde força por esquecer que seu papel documental é introduzir seu universo aos mais amplos olhares, abrangendo tanto os amantes e conhecedores da assunto, bem como aqueles que não fazem ideia do que Pharrell Williams e seu trabalho significam para além do cenário artístico.
Tratando uma temática tão inspiradora e fundamental, que diz respeito ao poder da arte de unir raças e quebrar paradigmas de um passado tenebroso, Hydration traz uma lição preciosa construída pelo empenho e determinação de Pharrell e seus parceiros. Com uma mensagem acalentadora e até mesmo poética, o documentário tem cacife para ser usado como um excepcional instrumento ilustrativo e motivador para artistas, gestões públicas e empresários visionários, mas corre o risco de muitas vezes perder a atenção de sua audiência por tratá-la de forma muito especializada e entendedora do cenário musical norte-americano. Mas ainda assim, por explorar a arte como mecanismo social universal, Hydration consegue ser a carta de amor de um garoto negro humilde que do pouco que tinha, iniciou uma bela onda de transformação.