quarta-feira, agosto 20, 2025
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    Crítica | ‘Um Simples Acidente’, Palma de Ouro Cannes 2025: a ferida aberta do Irã exposta ao mundo por Jafar Panahi

    O que acontece quando um cineasta é proibido de filmar, mas ainda assim insiste em mostrar a verdade? Jafar Panahi, um dos cineastas mais audaciosos e premiados do cinema contemporâneo, retorna com força devastadora em Um Simples Acidente, longa que lhe rendeu a Palma de Ouro em Cannes. Vindo de um período de prisão e greve de fome por protestar contra o regime fundamentalista islâmico de seu país, o diretor iraniano não apenas sobrevive – ele resiste com arte, com denúncia, com ferocidade.

    Autor de obras marcantes como Táxi Teerã (Urso de Ouro, 2015), O Círculo (Leão de Ouro, 2000) e O Espelho (Leopardo de Ouro, 1997), Panahi se firma como um dos poucos cineastas a conquistar os quatro maiores prêmios dos principais festivais de cinema – Cannes, Berlim, Veneza e Locarno. Mais do que troféus, seus filmes são manifestos visuais que transitam entre a ironia, o cotidiano e a dor da repressão.

    Um Simples Acidente começa com uma cena de aparência banal, mas carregada de simbolismo: um homem (Ebrahim Azizi) dirige à noite com sua esposa grávida e a filha pequena quando atropela um cachorro na estrada. O carro quebra e, ao tentar ajudar, ele para em uma oficina no meio do nada, de propriedade de Vahid (Vahid Mobasseri), um mecânico apelidado de “Jughead” pela maneira como segura os rins doloridos.

    Por meio do passo arrastado do homem — portador de uma prótese na perna —, Vahid aposta que ele seja o seu torturador durante o período em que esteve preso. Em busca de reparação, ele o segue e arma uma emboscada para prendê-lo em sua van. No entanto, surge a dúvida: este é realmente o seu agressor ou ele está apenas descontando sua frustração em outrem?

    Este é o ponto de partida de uma trama que se desdobra de forma labiríntica, quase surreal, reunindo personagens marcados por experiências brutais com o regime: uma fotógrafa de casamentos, Shiva (Maryam Afshari); o casal de noivos retirado do meio de seu ensaio fotográfico, Ali (Majid Panahi, sobrinho do diretor) e Golrokh (Hadis Pakbaten); e um furioso e pouco confiável rebelde, Hamid (Mohamad Ali Elyasmehr). Todos se reúnem para confirmar a identidade do carrasco e, no fim das contas, refletir sobre qual será a sua penitência.

    Personagens díspares, porém com o mesmo passado: vendados diante de um carrasco que só podem reconhecer pelo som dos passos e da voz. Para quem perdeu a visão, o barulho ao redor passa a ter mais significado — tanto que apenas os passos da perna arrastada desencadearam o trauma em Vahid a tal ponto que ele tenta cometer os mesmos crimes pelos quais foi subjugado.

    Jafar Panahi com a Palme d’Or (Foto: Divulgação/ Festival de Cannes)

    Gravado de forma clandestina, isto é, sem autorização do governo iraniano, Um Simples Acidente é um ato de resistência em si. Boa parte das cenas se passa dentro de veículos ou em meio ao deserto — paisagem árida e simbólica que ecoa o vazio institucional e moral de um país em ruínas. Há ali uma árvore solitária, mencionada por um dos personagens como saída de um cenário da peça Esperando Godot, onde o absurdo é regra e a espera nunca se finda.

    Panahi constrói um suspense em camadas. A princípio, tudo parece casual, quase insosso, mas, aos poucos, o espectador é tragado por uma rede de tensões e fraturas, tanto pessoais quanto coletivas. Cada personagem é uma estaca fincada na carne de um trauma social — todos mutilados, de forma literal ou simbólica, por um Estado que corrói de dentro para fora. A revolta do diretor se manifesta em detalhes que, no contexto iraniano, soam como bombas silenciosas: mulheres sem o véu obrigatório, policiais ridicularizados, subornos pagos com maquininhas de cartão.

    Com maestria, o cineasta iraniano mescla tragédia e farsa, sem jamais soar leviano. A sátira é sua forma de sobreviver à violência sistêmica. A crítica à hipocrisia institucional é afiada e direta. O desfecho do filme é uma pancada em tonamidade rubra: um confronto tenso e brutal entre um soldado obediente e o “inimigo” que recusa a submissão. É a encarnação viva do dilema moral que perpassa toda a narrativa – a linha tênue entre o oprimido e o opressor, entre a vingança e a justiça. Panahi não oferece respostas fáceis, mas obriga o espectador a olhar de frente para a monstruosidade do cotidiano sob tirania.

    Um Simples Acidente é tudo, menos simples. É cinema como denúncia, como grito, como coragem. É o retrato de um país esfacelado, mas também de um artista que, mesmo proibido de filmar, ainda encontra uma lente através da qual o mundo possa ver a verdade.

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