Como pudemos observar nas quatro incursões anteriores da franquia Uma Noite de Crime, uma vez ao ano, durante 12 horas, os cidadãos estadunidenses podem fazer parte do expurgo, período que permite aos seus participantes, matar, roubar e destruir, sem responder legalmente por seus atos extravagantes, chamados de purificação pelos personagens deste universo que aparentemente, chega ao fim no quinto filme, subintitulado A Fronteira.
Na empreitada, o cineasta mexicano Everardo Valerio Gourt assume o comando da narrativa que troca a violência e o horror por mais momentos semelhantes aos filmes de ação. Os machados e facões perdem espaço para os fuzis, metralhadoras e demais armas de fogo em larga escala, com explosões, arrombamentos e perseguições intensas, promovidas pela desregulagem nas engrenagens que permitem o estabelecimento do expurgo anual.
Agora, ao longo dos 104 minutos deste capítulo da franquia, um grupo se supremacistas brancos querem prolongar a noite de purificação, mantendo-a como proposta constante, tendo em vista realizar a limpeza social tão desejada por aqueles que, tal como Donald Trump, anseiam por uma nação livre de imigrantes, “invasores” chamados de impuros, chagas de uma sociedade que na ótica extremista, perde em desenvolvimento com tais presenças indesejadas. Para o desenvolvimento da história, o Texas foi a escolha ideal.
Com estrutura dramática desenvolvida por James DeMonaco, Uma Noite de Crime: A Fronteira começa com a saga ofegante de Adela (Ana de la Reguera) e seu marido Juan (Tenoch Huerta), ambos mexicanos, em fuga para o território estadunidense após a tomada da região onde moravam, prejudicada por um cartel de drogas perigoso. Eles atravessam ilegalmente e conseguem se estabelecer numa região próxima ao suntuoso empreendimento de separação dos habitantes de ambas as nações, a gigantesca muralha que demarca a fronteira título do filme. Ao chegar, o casal consegue emprego e, aparentemente, a paz que tanto almejavam. Enquanto Adela trabalha para um frigorífico, Juan ganha a atenção do fazendeiro Caleb Tucker (Will Patton), homem de família rica e cheia de privilégios, mas com “consciência” política. O seu filho, Dylan (Josh Lucas), ciumento, desprende energias negativas em direção ao cowboy Juan, pois não consegue demonstrar uma fatia sequer do desempenho do mexicano com os cavalos da fazenda.
Com isso, imaginamos que o roteiro proponha a doce e velha vingança como caminho para a purificação do jovem branco rico, mas isso não acontece. O filme reverte o óbvio.
O inesperado, por sua vez, toma todos os personagens de assalto. O expurgo é finalizado, mas um grupo de rebeldes parece não interessado em encerrar a noite de liberação geral das emoções e instintos selvagens. Tudo isso gera uma série de conflitos que fará o rico e o pobre, isto é, o casal Adela e Juan, parte dos socialmente oprimidos, se juntarem aos privilegiados da família Tucker, para que juntos, consigam sobreviver diante de tanto caos e destruição. A casa como fortaleza não é mais um empreendimento que garante total segurança dos mais favorecidos, colocando em cena personagens que passam por um processo de nivelamento diante da nova ordem dos que rejeitam o retorno ao estado calmo das coisas. Aqui, todo mundo precisa batalhar nas mesmas condições, todos em busca da sobrevivência sem maiores traumas. Alguns conseguem garantir espaço num futuro incerto, outros, no entanto, não tem a mesma sorte, tornando-se parte das estatísticas de aniquilados pela nova ordem.
Apesar de James DeMonaco ter algumas inconsistências em suas críticas sociais, a linha de pensamento estabelecida pelo criador deste universo não deixa de ser pertinente, interessante, envolvente enquanto entretenimento, ainda que paradoxos se estabeleçam para o público, como é o caso da permanência num posicionamento político central no desfecho deste último episódio da franquia, mesmo que a ideia inicial seja muito bem definida enquanto polo de localização dos personagens cheios de perspectivas. O tema continua bem delineado: a sede de violência embutida em cidadãos que ao longo de suas vidas em sociedade, indivíduos que precisaram reprimir os seus instintos pelo bem comum.
A sensação, no entanto, é de mais do mesmo, não apenas para quem fez uma retrospectiva no formato maratona dos antecessores, para acompanhar o clima do filme mais atual, mas por conta das duas temporadas da série homônima e das discussões semelhantes empreendidas em filmes da mesma linha narrativa.
No que tange aos aspectos estéticos, Uma Noite de Crime: A Fronteira traz os enquadramentos peculiares do universo, com uso do POV para criar tensão e de cenas com abertura bastante ampla, focada na demonstração do caos para todos os lados por onde circulam e se deslocam os personagens. Assinada por Luis David Sansans, a direção de fotografia da produção, desta vez, funciona dentro de esquemas burocráticos, sem criar a mesma carga de intensidade dos anteriores, em especial, Anarquia e A Primeira Noite de Crime, narrativas com suas incoerências dramáticas, mas estruturalmente construídas para transmitir desconforto e intensidade emocional.
The New Brothers, responsáveis pela textura percussiva, nos permitem o acompanhamento do caos interior da história com o apoio de uma sonoridade angustiante, mas pouco expressiva, menos interessante até mesmo que as famigeradas sirenes que tocam cada vez que o expurgo se inicia e se encerra, som mais potente e representativo deste universo que qualquer acorde composto ao longo dos cinco capítulos desta franquia que chega ao fim de maneira bastante irônica, contornando os caminhos para os personagens inicialmente em trajetória inversa.
Tópicos temáticos como racismo e xenofobia ganham espaço nesta sociedade distópica que representa a tortura, o roubo, o homicídio e outras transgressões como ações não condenáveis dentro do tempo estipulado para o expurgo anual. As vítimas, em sua maioria, são pessoas de baixa renda, impossibilitadas de conseguir manter a integridade física diante das propostas deste capitalismo que se alimenta de vidas alheias. Em Uma Noite de Crime: A Fronteira, observamos uma crítica aos instintos expurgados, mas nós mesmos purificamos ao passo que contemplamos, do lado de cá, o espetáculo de violência desenvolvido enquanto produto de entretenimento para nosso consumo.
Pode parecer paradoxal, e de fato, é, mas ser espectador do ensaio audiovisual deste universo criado por James DeMonaco não significa que concordamos com as suas ideias de maneira geral, mas que há alguma pertinência na reflexão apontada em cada um dos filmes. Numa das sessões do filme nos Estados Unidos, um atirador alvejou o público e conseguiu ceifar a vida de uma espectadora. Ele, de certa maneira, purificou, dentro de um filme sobre a purificação. Complexo, não é mesmo? Você, caro leitor, o que acha?
Em linhas gerais, Uma Noite de Crime: A Fronteira é um filme sobre o medo do “outro”, daquilo que é considerado desconhecido, por isso, perigoso. É o pavor diante daquilo que está “do lado de fora”, assustador pelo fato de ser obscuro e catalisador de temores e ansiedades. O que é delineado enquanto crise política e social nas produções deste universo está também constantemente reforçado em nossa mídia televisiva, nos programas que seguem o padrão Linha Direta, Brasil Urgente, dentre outros. Será que o estabelecimento de um expurgo num país como o Brasil, por exemplo, resolveria a criminalidade que nos apresenta casos hediondos a cada edições dos programas do tipo mencionado anteriormente? Alguns acreditam que sim. Outros repreendem veementemente, pois tal como ocorre neste episódio de encerramento da franquia, o experimento bem-sucedido durante eras acabou se tornando uma vítima de suas próprias ideias perigosas, transformado num projeto caótico, reformulado para interesses bem específicos, desvirtuados de suas bases. O que antes era contenção para manutenção da ordem se tornou um desvio total de perspectiva. Aos personagens, cabe aceitar a proposta de renascimento num território que anteriormente era visto como um “não-lugar” indesejado ou impróprio, numa curva que é pura ironia da vida e do roteiro de James DeMonaco.
Será que chegamos realmente ao fim deste universo?