A escuridão absoluta vai além de uma cegueira tátil. Dentro do mais profundo isolamento, onde a luz do dia e o brilho das estrelas lhe é privado e as pequenas e essenciais coisas lhe são tiradas, estar em pleno breu não é apenas ter sua compreensão sensorial da vida parcialmente comprometida. Entre efêmeros feixes de luz e o profundo sucumbimento à solidão, estar no escuro é como viver morto. Uma realidade antagônica, ela definiu dolorosos 12 anos da vida de três das figuras mais emblemáticas do Uruguai. E pelas lentes e perspectiva do cineasta hispano-uruguaio Alvaro Brechner, as narrativas de Mauricio Rosencof, Eleutério Fernández Huidobro e do ex-presidente José “Pepe” Mujica ganham uma nova percepção, que extrai o mais denso realismo de uma trágica história real, a partir de uma ótica em que a resiliência humana é entregue de bandeja como um conto avassalador e digno de Oscar. Esse é o âmago de Uma Noite de 12 Anos.
Absorver as estações do ano, a passagem do tempo e o universo que nos cerca está diretamente vinculado a ser alguém livre. No drama de Brechner, essas certezas são colocadas em cheque, conforme absorvemos um país no auge de uma ferrenha ditadura militar, que se desenvolve em meio a um contexto sociopolítico, econômico e cultural mundial em constante desmembramento. Mas o que acontece das grades da prisão para fora pouco importa. Os anos hippie podem estar em vigor e a vindoura década de 80 pode até anunciar a chegada da revolução tecnológica, mas a psique humana estirada em limites extraordinários é o que nos vale aqui. E a construção deste pequeno mundo é tão intimista, ao ponto de ser capaz de nos arrebatar subitamente.
Acompanhando os longos períodos de cárcere de três militantes dos Tupamaros, conhecemos gradativa e efemeramente suas vidas antes da nova e subversiva realidade. Como lapsos de memórias que servem como instrumentos de apego à sanidade, esses breves hiatos da narrativa são apresentados com doçura, emanam luz natural e leveza, promovendo um profundo contraste com o negrume, a podridão e a imundice das diversas celas pelas quais percorreram. E como cordeiros que se calam diante de seu algoz, Rosencof, Huidoro e Mujica já se imortalizam como símbolos pacifistas e idealistas, levados aos extremos mais adversos que – surpreendente – moldaram seu caráter e o feeling político que ditaria suas vidas pós ditadura militar. Essa visão apurada de um roteiro impecável feito por Brechner garante uma experiência sensorial e sinestésica extasiante. Ao observarmos a dor alheia como expectadores oniscientes, nos tornamos a única companhia dos bravos prisioneiros, partilhando de um sofrimento infindável de maneira palpável e genuína.
Essa experiência só é capaz graças à combinação fundamental de uma direção intimista e de um elenco soberbo, munido de uma expressividade inestimável. Com um estilo de filmagem que transforma o sofrimento dos prisioneiros nos olhos da audiência, a câmera trêmula simula os devaneios dolorosos de Mujica, exploram o vazio no olhar de Rosencof e destrincha a fragilidade da compressão de espaço sentida por Huidobro. E por meio das atuações de Antonio de la Torre, Chino Darí e Alfonso Tort, a trama ganha vida para além das telas, nos conquistando com tanto afinco como nem sempre se vê no cinema. Uma Noite em 12 Anos é exatamente como o título propõe: uma extensão de trevas onde a luz não apenas não penetra o negrume, como também a repele ferozmente.
Ao estudar a mente e o corpo humano para dimensionar suas limitações e sequelas diante da pior das circunstâncias, Alvaro Brechner entrega um relato reflexivo, que se inspira no livro de memórias de autoria dos colegas de Mujica, Mauricio Rosencof e Eleuterio Fernández Huidobro. Redesenhando o período mais conturbado da vida dos protagonistas, o cineasta se consolida como uma forte aposta ao Oscar 2019 de Melhor Filme Estrangeiro, por fazer de um conto verdadeiro um experimento sensorial autêntico. Se esquivando do óbvio e comum drama meramente baseado em fatos reais, ele faz de Uma Noite de 12 Anos uma das narrativas existencialistas mais completas, se esgueirando para aquele hiato onde poucos conseguem entrar com maestria: o universo mental do homem.