sábado, abril 20, 2024

Crítica | Uma Noite Não é Nada: Romance obsessivo em um drama desconfortável

A psique humana no auge da sua subversão, a pobreza extrema e tantas outras mazelas que possuem os traços da brasilidade. Em nosso cinema reside uma riqueza de histórias particulares e peculiares, que fortalecem as raízes do nosso povo, trazem suas feições e marcas do tempo, regadas por uma identidade única. E em Uma Noite Não é Nada, um romance abusivo se desabrocha de maneira desconfortável nas telas, entregando um drama pesado e forte que segue essa autenticidade brasileira e que evidencia ainda mais a profundidade dessa nossa arte que, à medida que conquista outros países, peleja em cativar sua própria nação por falta de incentivo público.

O drama de Alain Fresnot é justamente fruto dessa intermitência da nossa história cinematográfica pouco valorizada, sofrendo para chegar à luz do projetor – como o próprio diretor já me relatou em entrevista. No caso de Uma Noite Não é Nada, a narrativa construída há quase 20 anos pelo cineasta francês naturalizado no Brasil só conseguiu o seu espaço após outros de seus projetos chegarem ao público. E uma produção com apelo mais popular, como é o caso de Família Vende Tudo, ajudou a pavimentar o caminho para o drama cult, que explora um abismo contrastante de gerações, pela perspectiva de um relacionamento abusivo entre um professor de meia idade do Ensino Médio e uma adolescente transgressora.

E aqui, Paulo Betti e Luiza Braga formam essa estranha e desajustada combinação, que incomoda a audiência com cenas fortes de abuso sexual e paixão desmedida, que se intercalam entre súbitos de violência. Como um retrato de duas vidas à beira do suicídio, Uma Noite Não é Nada extrapola as linhas de seu roteiro, entregando uma obra com ares experimentais, que brinca com seu design de produção e figurino. Construindo um longa bem articulado, ele faz da fotografia à escolha da paleta de cores do visual dos personagens uma maneira autêntica de contar essa história, que se passa no auge dos anos 80, em meio à drástica epidemia da AIDS.

E ao trazer um background firmado em um dos momentos históricos mais preocupantes da civilização moderna e contemporânea, Fresnot acerta na construção de seu roteiro. Apresentando a doença a partir da metade de sua trama, ela entra como mais um argumento da narrativa, como uma espécie de carta suicida, que atesta o nível de loucura mental de seu protagonista apático e desprezível. Sem se aprofundar na doença em si – fazendo dela um cavalete de sustentação da insensatez de Agostinho (Betti), o drama cult segue seu ritmo na mesma apatia de seus protagonistas, que se renderam à vidas fúteis e sem significados. Alinhavando um romance que não caminha em direção a Lolita, Uma Noite Não é Nada é antagônico, à medida que seus personagens, à deriva da existência humana, andam em direção a uma rota de colisão subversiva.

Explorando tons sóbrios em sua fotografia, fazendo a cor saltar os olhos em apenas alguns fragmentos e atributos do filme, Fresnot entrega uma obra que passou por um longo processo de gestação. Chegando ao público fora de seu espaço-tempo, o drama oitentista ainda é pontual, ao tratar de maneira autoral e irreverente um relacionamento amoroso abusivo, assim como continuamos a ouvir falar e até testemunhar na contemporaneidade. Abordando, de maneira subliminar, o abuso e a dependência emocional em paixões à flor da pele, Uma Noite Não é Nada ainda beira a ironia, ao fazer de seu título um contraste com as consequências e efeitos de um romance que – embora tenha surgido como se não significasse nada – consumiu o pouco que um homem singelo e despercebível já foi um dia.

 

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