terça-feira , 5 novembro , 2024

Crítica | Verão de 85 – François Ozon apresenta pulsões de amor e morte em cenário nostálgico dos anos 80

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Ao som de ‘Inbetween Days’, de The Cure, e ‘Sailing’, de Rod Stewart, François Ozon nos transporta aos anos de 1980 em uma doce aventura sobre a descoberta do primeiro amor, a efervescência da juventude e o mistério de ruptura desse encanto. Selecionado para o Festival de Cannes 2020 e presente no Festival Varilux 2020, Verão de 85 (Été 85) chega finalmente aos cinemas brasileiros dia 4 de fevereiro. Esta é a volta do diretor francês ao tema da juventude e suas explorações, como em suas obras Swimming Pool – À Beira da Piscina (2003) e Jovem e Bela (2013). 

Com um enunciado de suspense, a narrativa de Verão de 85 parte das memórias do jovem Alexis (Félix Lefebvre). Sob o pedido do seu professor de literatura, o jovem começa a escrever os acontecimentos que o levaram ao escritório da polícia. Lá, ele deve prestar um depoimento, mas as palavras não saem da sua boca. A sugestão do docente é que através da escrita, Alexis consiga superar o bloqueio e permita às autoridades compreender as motivações de seus atos. É possível fazer uma ponte com a assimilação da culpa através da escrita mostrada por Gus Van Sant em Paranoid Park (2007). 

Adaptado do romance Dance on My Grave (1982), do britânico Aidan Chambers, o roteiro de François Ozon percorre essa atmosfera de suspense e relata esse eternizado verão em flashback. Sempre sob a perspectiva de Alexis, a litorânea e bucólica região de Seine-Maritime, na Normandia, é o cenário do acalorado encontro de Alexis e David (Benjamin Voisin). Em um pequeno imprevisto ao mar, Alexis fica à deriva até aparecer David com seu olhar, sorriso e gentileza ímpares para ajudá-lo. Todas as atitudes de David refletem notáveis e mágicas aos olhos do tímido rapaz. 

Para compreender a admiração e o desejo crescente entre os dois, Verão de 85 conta com a performance magnética do estreante Benjamin Voisin. Sua interpretação de rebeldia, liberdade e confiança faz com que não apenas Alexis apaixona-se por ele, mas todos ao seu redor. Ou seja, mesmo o espectador do outro lado da tela rende-se ao seu charme. Contudo, é válido atentar-se que a narrativa dessa história é contada conforme os olhos apaixonados de Alexis. Projeta-se, portanto, um jogo de percepção e narração como proposto por Ozon em seu longa Dentro da Casa (2012). 

Férias de verão são constantemente cenários perfeitos para o desencadeamento de novas emoções. Em outras palavras, é a ambientação adequada para extrapolar o ordinário da vida cotidiana. Com a magia das ondas marítimas, o balneário embala encontros inesperados como de Elio (Timothée Chalamet) e Oliver (Armie Hammer), em Me Chame Pelo Seu Nome (2017), de Luca Guadagnino. Pela aproximação de lançamentos e a peculiaridade do primeiro amor homossexual masculino, a comparação imagética é imediata; porém, elas são limitadas a esses pontos e as canções de Sufjan Stevens. Neste drama, Ozon propõe um confronto entre os amantes sobre descobertas, deslumbramento e a ilusão dos sentimentos. 

Ao lado de David, Alexis sente-se despertar para a vida, seja na garupa de sua moto a desafiar a velocidade, seja no seu barco a enfrentar tormentas em alto mar. Entretanto, seu júbilo é ameaçado pela presença de Kate (Philippine Velge), uma intercambista britânica. O interesse de David pelas pessoas é algo que inquieta Alexis. O modo de vida do seu parceiro, no entanto, é desafiar as regras e ele estimula-se através de vidas alheias, como ajudar um rapaz bêbado na rua, somente por sentir-se instigado àquele espírito ébrio pedido na sarjeta. Ironicamente, é Kate a conexão de Alexis para compreender o despojado David. 

Com a crescente disputa entre o desejo de possuir e a vontade de liberdade, Voisin e Lefebvre protagonizam um espetáculo sedutor de angústia e sufoco. A verbalização dessas emoções tornam-se punhais e, neste cenário, uma tragédia anunciada. Se a juventude é um ponto de ebulição, ela também joga com uma crescente pulsão de morte. Termo utilizado por Freud para designar nossa obstinação em busca de um prazer absoluto, mas inalcançável. 

Dentro dessa mise en scène, a música desempenha um papel particular. ‘Salling’, de Rod Stewart, é a mais poderosa, entre outros clássicos de 1980, como ‘Cruel Summer’, de Bananarama, e ‘Paris Latino’, de Bandolero. Em uma cena na discoteca, Alexis, aos acordes de ‘Salling’, nos projeta em seu mergulho ao lado de David. A canção funciona igualmente como conjunção narrativa da sublimação de seu remorso e a conclusão de suas memórias.  

 

Por outro lado, a projeção do romance jovem é interrompida por meio da intromissão do tom policial do início. Verão de 85 busca captar a atenção do espectador com o gancho do suspense, no entanto, a narrativa causa um estranhamento ao nos distanciar do apaixonado relato de Alexis para um mundo pragmático. Um universo no qual pequenos gestos de ruptura quebram regras do sistema e são punidos. De volta ao escritório da polícia, Alexis ouve sua sentença. A ruptura do filme é desagradável e minguante, porém simbólica, porque como já dizia Sigmund Freud: a repressão dos desejos nos leva a sintomas histéricos.

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Letícia Alassë
Crítica de Cinema desde 2012, jornalista e pesquisadora sobre comunicação, cultura e psicanálise. Mestre em Cultura e Comunicação pela Universidade Paris VIII, na França e membro da Associação Brasileira de Críticos de Cinema (Abraccine). Nascida no Rio de Janeiro e apaixonada por explorar o mundo tanto geograficamente quanto diante da tela.

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Com um enunciado de suspense, a narrativa de Verão de 85 parte das memórias do jovem Alexis (Félix Lefebvre). Sob o pedido do seu professor de literatura, o jovem começa a escrever os acontecimentos que o levaram ao escritório da polícia. Lá, ele deve prestar um depoimento, mas as palavras não saem da sua boca. A sugestão do docente é que através da escrita, Alexis consiga superar o bloqueio e permita às autoridades compreender as motivações de seus atos. É possível fazer uma ponte com a assimilação da culpa através da escrita mostrada por Gus Van Sant em Paranoid Park (2007). 

Adaptado do romance Dance on My Grave (1982), do britânico Aidan Chambers, o roteiro de François Ozon percorre essa atmosfera de suspense e relata esse eternizado verão em flashback. Sempre sob a perspectiva de Alexis, a litorânea e bucólica região de Seine-Maritime, na Normandia, é o cenário do acalorado encontro de Alexis e David (Benjamin Voisin). Em um pequeno imprevisto ao mar, Alexis fica à deriva até aparecer David com seu olhar, sorriso e gentileza ímpares para ajudá-lo. Todas as atitudes de David refletem notáveis e mágicas aos olhos do tímido rapaz. 

Para compreender a admiração e o desejo crescente entre os dois, Verão de 85 conta com a performance magnética do estreante Benjamin Voisin. Sua interpretação de rebeldia, liberdade e confiança faz com que não apenas Alexis apaixona-se por ele, mas todos ao seu redor. Ou seja, mesmo o espectador do outro lado da tela rende-se ao seu charme. Contudo, é válido atentar-se que a narrativa dessa história é contada conforme os olhos apaixonados de Alexis. Projeta-se, portanto, um jogo de percepção e narração como proposto por Ozon em seu longa Dentro da Casa (2012). 

Férias de verão são constantemente cenários perfeitos para o desencadeamento de novas emoções. Em outras palavras, é a ambientação adequada para extrapolar o ordinário da vida cotidiana. Com a magia das ondas marítimas, o balneário embala encontros inesperados como de Elio (Timothée Chalamet) e Oliver (Armie Hammer), em Me Chame Pelo Seu Nome (2017), de Luca Guadagnino. Pela aproximação de lançamentos e a peculiaridade do primeiro amor homossexual masculino, a comparação imagética é imediata; porém, elas são limitadas a esses pontos e as canções de Sufjan Stevens. Neste drama, Ozon propõe um confronto entre os amantes sobre descobertas, deslumbramento e a ilusão dos sentimentos. 

Ao lado de David, Alexis sente-se despertar para a vida, seja na garupa de sua moto a desafiar a velocidade, seja no seu barco a enfrentar tormentas em alto mar. Entretanto, seu júbilo é ameaçado pela presença de Kate (Philippine Velge), uma intercambista britânica. O interesse de David pelas pessoas é algo que inquieta Alexis. O modo de vida do seu parceiro, no entanto, é desafiar as regras e ele estimula-se através de vidas alheias, como ajudar um rapaz bêbado na rua, somente por sentir-se instigado àquele espírito ébrio pedido na sarjeta. Ironicamente, é Kate a conexão de Alexis para compreender o despojado David. 

Com a crescente disputa entre o desejo de possuir e a vontade de liberdade, Voisin e Lefebvre protagonizam um espetáculo sedutor de angústia e sufoco. A verbalização dessas emoções tornam-se punhais e, neste cenário, uma tragédia anunciada. Se a juventude é um ponto de ebulição, ela também joga com uma crescente pulsão de morte. Termo utilizado por Freud para designar nossa obstinação em busca de um prazer absoluto, mas inalcançável. 

Dentro dessa mise en scène, a música desempenha um papel particular. ‘Salling’, de Rod Stewart, é a mais poderosa, entre outros clássicos de 1980, como ‘Cruel Summer’, de Bananarama, e ‘Paris Latino’, de Bandolero. Em uma cena na discoteca, Alexis, aos acordes de ‘Salling’, nos projeta em seu mergulho ao lado de David. A canção funciona igualmente como conjunção narrativa da sublimação de seu remorso e a conclusão de suas memórias.  

 

Por outro lado, a projeção do romance jovem é interrompida por meio da intromissão do tom policial do início. Verão de 85 busca captar a atenção do espectador com o gancho do suspense, no entanto, a narrativa causa um estranhamento ao nos distanciar do apaixonado relato de Alexis para um mundo pragmático. Um universo no qual pequenos gestos de ruptura quebram regras do sistema e são punidos. De volta ao escritório da polícia, Alexis ouve sua sentença. A ruptura do filme é desagradável e minguante, porém simbólica, porque como já dizia Sigmund Freud: a repressão dos desejos nos leva a sintomas histéricos.

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Letícia Alassë
Crítica de Cinema desde 2012, jornalista e pesquisadora sobre comunicação, cultura e psicanálise. Mestre em Cultura e Comunicação pela Universidade Paris VIII, na França e membro da Associação Brasileira de Críticos de Cinema (Abraccine). Nascida no Rio de Janeiro e apaixonada por explorar o mundo tanto geograficamente quanto diante da tela.

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