Depois de tratar do nascimento de heróis e de vilões, Shyamalan explora o poder do legado
Eu nunca entendi porque ‘Corpo Fechado’ sempre foi tão mal avaliado. Diga-se, me espanta que, especialmente hoje em dia, brotem pessoas dizendo que ‘detestam‘ o filme. A internet abriu essa caixa de Pandora que agora permite que o ‘não gostei‘ vire um ‘detesto‘, ‘odeio‘. Pra mim, é uma das melhores coisas que o Shyamalan fez, em muitos aspectos, melhor que ‘Sexto Sentido‘ (o queridinho de todos) por exemplo.
‘Sexto Sentido‘ é um filme bem executado, mas prisioneiro de sua fórmula: uma vez que se sabe o final, não há mais nada a acrescentar. ‘Corpo Fechado‘, por outro lado, é um filme de estrutura, ele não exige um final climático; ele constrói uma jornada – na verdade, duas.
Enquanto ‘Fragmentado‘ é um filme de personagem muito bom, dentro da trilogia, soa como um “episódio do meio“.
Chega ‘Vidro‘, que volta a estrutura da jornada acima da pirotecnia, e aposta numa simplicidade arrebatadora aliada ao combo ‘homenagem-reverência-distorção‘ do universo dos quadrinhos, do mundo nerd, geek na essência de suas obras tanto quanto de seus consumidores.
‘Vidro‘, como todos os filmes do diretor (que quero abraçar e agradecer imensamente pelo conjunto da obra que me arrancou lágrimas no cinema, coisa que há muito tempo não acontecia) investe na pessoa comum capaz do extraordinário, na discussão da fé (fé em si, fé no outro, fé no divino, fé em algo invisível – a própria negação da dúvida, aquilo que ele coloca intensamente em cada obra) e ainda pega tudo e discute no divã.
Ele nos coloca para questionar, mas não deixa dúvidas nem pontas soltas. Ele nos engana, porque queremos ser enganados. Precisamos disso.
Seu único pecado é que, mesmo depois de enganados, queremos a recompensa, e ele se recusa a dá-la, pelo menos, não de mão beijada. O fim do filme exige um nível de sensibilidade difícil de encontrar hoje em filmes do gênero, na verdade, difícil de encontrar em quase todo tipo de cinema que tem sido feito. Exige um desprendimento, uma compreensão das regras (como o divertido e super esperto ‘O Segredo da Cabana‘ tentou no universo dos filmes de terror, mas levou água, exatamente, por ser ‘esperto demais’) e um desejo genuíno de ir além dos limites da expectativa.
O maior benefício, que foi pouco – isso quando foi – visto e entendido pela maior parte das criticas negativas que saíram hoje, é a discussão do medo frente poderes que não entendemos, ou não possuímos (ah, a inveja!).
Essa é uma discussão que os ‘X-Men‘ lançam há décadas em meio a questão do preconceito, mas que não passa em branco.
O terror de ver-se pequeno, frágil e incapaz. Um medo que “Mr Glass” expunha no primeiro filme ao procurar seu lugar no mundo. Não é possível que ele tenha, simplesmente, nascido daquele jeito por nada. Ele não podia ser um erro, ele era apenas o outro lado de uma balança formada por criaturas excepcionais (cada uma a sua maneira).
Ele encontra seu lugar, e é fantástico como esse lugar justifica o NOSSO lugar se assim o quisermos, o aceitarmos… ou, recusarmos.
Há papéis a serem assumidos, e cada um o assume.
A ciência tenta descredenciar os espetaculares poderes e peculiaridades desses três indivíduos, através da lógica, do método cientifico, encarnado na figura da Dra Staple… mas quando o faz, os submergindo nesse jogo de dúvida e descrença, acaba por corroborá-los, colocando-os a prova, e os justificam.
No fim, quando a ciência e a realidade tenta desmistificar o herói, ele apenas o torna mais real, mais palpável.
É difícil dizer o quão diferente essa obra seria se não fosse pelo seu trio de protagonistas.
James McAvoy diminui, até quase anular, qualquer soluço ou gap na mudança entre uma personalidade e outra (e muitas outras brotam! É de enlouquecer). Ele é um monstro em cena, literalmente. Por ‘Fragmentado‘, passou sem qualquer reconhecimento na temporada de premiações. Pelo visto, o erro deve se repetir (ainda espero que não). Ele rouba a cena em todo o primeiro e segundo atos do filme, já no terceiro, não tinha como competir com o brilhantismo de Jackson (do qual já vou falar) com sua melancólica trama. Afinal ele também, como o filme que o apresentou, é um meio para um fim ainda maior.
E aqui, entra a dupla original.
Se por um lado o David Dunn de Bruce Willis não brilhou tanto, servindo mais como um preenchimento para justificar a trama (vamos combinar que esse é um mal do qual praticamente, todos os heróis, que tem vilões INCRÍVEIS,), o Elijah Price de Samuel L. Jackson justifica tudo.
É incrível como ele dosa, de forma simultânea, o brilhantismo quase cruel de uma mente superiora, com a inocência infantil, pueril de quem vive uma construção de arquétipos de forma tão religiosa, exclusivamente, para ter seu ‘sentido na vida’.
Aqui está o pulo do gato desse filme.
Já vimos isso em ‘Corpo Fechado‘, então, que novidade essa trama nos traria?
É um tanto inocente imaginar que a trama, ao contrario do que os trailers dão a entender, se movimente em função da egolatria de Elijah. Não é apenas para que ‘o mundo veja’ que eles existem, mas sim, o que isso significa.
Aqui, entra a personagem de Sarah Paulson, a Dra Ellie Staple. Ir além disso, poderia estragar a experiência, mas num resumo, a personagem de Paulson é a encarnação da descrença. Mas, mais que a descrença, é a recusa. Ela funciona como o novo ponto contrario da balança.
A questão não é mais entre heróis e vilões, eles existem, sabem quem são, mas sim, entre quem tem e quem não tem, o poder. São os homens contra os deuses, e Paulson incorpora muito bem essa figura. Não é difícil para ela, afinal, ela já incorporou personagens com traços muito parecidos na série American Horror Story. Diga-se, sua Dra Staple parece um amalgama de personagens que ela já fez antes. Não é um demérito de forma alguma, até porque, é sempre um prazer vê-la em cena, especialmente, com seu olhar atrevido e direto, quase insolente.
Ela se desdobra em dezenas de personagens e, ainda sim, é ela mesma. Uma ótima adição ao elenco.
Eu poderia ainda me estender na direção de arte.
Desde a primeira imagem com os três assumindo suas cores (roxo para Price, laranja para Crumb e verde para Dunn) na sala rosa, era evidente que Shyamalan abusaria de uma paleta divertida e cartunesca para dar ainda mais vida a sua já tradicional, e maravilhosa, sobreposição de quadros.
Vamos combinar, até nos ‘quadros mexicanos’ (aquele em que os dois atores conversam, ambos, olhando para a direção da câmera – o que sempre coloca um de costas para o outro) ele faz tudo fazer sentido, ser esteticamente bonito. É teatral, mas também emocional.
Seu amor pelos quadros nos dá vários momentos deliciosos de se ver, como no corredor do subsolo, a luta no gramado, a revelação na sala de objetos, os deliciosos takes através de espelhos de teto na loja de quadrinhos… tudo com um ar de quadrinhos que nem mesmo os filmes dos maiores concorrentes no setor (Marvel e DC) conseguiram entregar até então.
Sem explosões e lutar épicas lotadas de super seres, ele nos entrega algo muito mais próximo do que lemos sem perder a mão de que está em outra mídia.
Shyamalan fecha sua obra prima abraçando todos os clichês, sempre embutidos nos textos apaixonados dos crentes (na figura de Glass), justifica-os na história que dá o ponto de equilíbrio (na construção de Crumb) e vai além: ele não distorce, mas se liberta de todas as expectativas numa jornada redentora, consciente e autodestrutiva dos convertidos (encantado nos Dunn).
E tudo é tão inteligente em seus milhões de tons de cinza, que a participação de Casey, Joseph e da mãe de Elijah, os ‘sidekicks’, a nossa conexão com o mundo ordinário – o nosso mundo – mostra a real extensão da formação do herói: ela não está NOS poderes, mas no que ele FAZ com esses poderes. Os três atores tem menos destaque na obra, o que não significa que tenho menos importância. O nascimento, a crença, a esperança, o esforço, a jornada… tudo que formou, assim como tudo que mantém, cada um desses seres extraordinários está aliado a uma pessoa comum: uma mãe, um filho, um igual.
O herói, como o vilão, é um conceito, não um fim ou uma justificativa. É mais que um ponto de vista, é o equilíbrio cósmico (e aqui… nossa, é difícil falar sem estragar qualquer surpresa). Eu poderia ficar horas falando desse filme (como dessa trilogia SOBERBA!), mas o tempo é curto e o espaço, limitado pela paciência dos leitores de hoje.
Em um breve resumo, ‘Vidro‘ fecha com maestria, emoção, justiça e muito amor uma história que nos lembra sobre o que é o cinema e a arte de escrever uma boa história.
Os últimos toques da trilha – que soa tão natural e fluida na trama que você esquece que tem musica – ainda ressoam nos ouvidos e no peito, enquanto lembro dos cacos de vidro subindo no fundo negro dos créditos.
Muito mais do que boa história, esta é uma história extraordinária.