Trocar a estabilidade de um cargo na BBC por um sonho incerto no cinema independente não é uma decisão comum — mas Carla Di Bonito nunca foi uma mulher comum. Nordestina, radicada na Europa e mãe solo, ela vem conquistando o mundo com uma história marcada por superação, luto e resistência feminina — tanto dentro quanto fora das telas.
Seu curta-metragem Luzinete, feito durante a graduação em cinema no Reino Unido, já coleciona mais de 220 prêmios em 44 países, incluindo reconhecimentos no BFI e em festivais de peso mundo afora. Mas o que há por trás dessa obra comovente vai muito além dos troféus.

“Eu fui calada durante muitos anos. Mas a minha voz é muito maior. E ela não é só minha, é a voz de toda mulher nordestina e brasileira que já sofreu, que já foi silenciada.”
Foi esse impulso visceral que levou Carla a escrever e dirigir o curta inspirado na morte de sua irmã — um processo que ela descreve como catártico e transformador. A ideia surgiu durante um exercício de roteiro sem diálogos, em plena pandemia. O resultado? Um filme cru, sensível e potente que retrata, com olhar afiado, os últimos momentos de uma mulher abandonada, sozinha e invisibilizada.
Luzinete é só o começo. Agora, Carla se prepara para dirigir seu primeiro longa, Nossos Caminhos, onde a história se expande, entrelaçando a trajetória de sua irmã com a dela mesma — e de tantas outras mulheres brasileiras.
Quando coragem vira direção
Antes de mergulhar de vez no audiovisual, Carla trilhou uma carreira sólida como jornalista na BBC. “Jornalistas do mundo todo sonham com uma vaga lá”, comenta. Mas o chamado da arte falou mais alto. “Foi uma decisão lenta e dolorosa. Eu duvidava de mim, como muitas mulheres fazem.”
A transição de profissão aconteceu já na vida adulta, após cuidar da mãe com Alzheimer, adotar uma criança e viver muitas vidas dentro de uma só. Aos quase 60 anos, ela encara com tranquilidade os olhares enviesados da indústria para “novos talentos” mais velhos. “Experiência de vida conta — e muito — na hora de contar uma boa história”, diz.
Um filme sobre mulheres, feito por mulheres

Outro destaque do trabalho de Carla é o protagonismo feminino nos bastidores. Desde a roteirista à primeira assistente de direção, passando pela produção executiva e elenco principal — tudo é tocado majoritariamente por mulheres.
“Eu não fiz isso por moda. Fiz porque era necessário. É um filme sobre mulheres fortes, então quem melhor para contar essa história do que outras mulheres?”
No elenco, nomes como Marcélia Cartaxo, Hermila Guedes e Dani Gondim dão vida a personagens que representam diferentes faces do feminino: da santa à pecadora, da mãe à filha. E, claro, a própria história de Carla também pulsa forte na narrativa.
Luto, raízes e pertencimento

O luto é o fio condutor de Luzinete e, agora, também do longa Nossos Caminhos. Carla descobriu a morte da irmã à distância, morando fora do Brasil, e usou o cinema como forma de processar essa ausência — e se reconectar com suas origens.
“Eu sou filha do cangaço, neta de índio, tenho sangue negro e europeu. Tudo isso está no filme”, resume. Para compor o roteiro do longa, ela voltou ao Brasil e mergulhou em entrevistas com pessoas próximas à irmã, revirando memórias e dores adormecidas. “A ideia é que quem assista veja a si mesmo ali. Porque essa é uma história universal: é sobre luto, pertencimento, superação.”
Um sonho coletivo

Mesmo com a repercussão internacional do curta, Carla ainda busca apoio para viabilizar o longa — seja por meio de coproduções no Brasil, editais europeus ou iniciativas independentes. A produtora é sediada em Londres, mas o coração da narrativa está no sertão nordestino.
“Eu quero que esse filme mostre que não importa de onde você veio, quantos obstáculos existam: se você tem um sonho, você pode. Só precisa correr atrás. Eu não tinha nada. Mas eu fui buscar.”
E é justamente por isso que a trajetória de Carla Di Bonito emociona tanto: ela é, antes de tudo, sobre resistência. E sobre como contar histórias pode ser, ao mesmo tempo, um ato social, artístico — e profundamente humano.