Darren Aronofksy é um dos diretores mais polêmicos da atualidade – e já ficou responsável por dar vida a diversos títulos que ficariam marcados na história do cinema. Apesar de sua estreia oficial, ‘Pi’, não ter tido o reconhecimento merecido à época do lançamento, Aronofsky chocaria o público com o controverso ‘Réquiem para o Sonho’ e produções subsequentes que eternizariam sua imagética única e sua habilidade de storytelling invejável. Mas não foi até 2010 que o cineasta viria a consagrar seu melhor título, ao menos por enquanto: o ambicioso e arrepiante thriller psicológico ‘Cisne Negro’.
Baseado no ballet de Pyotr Ilyrich Tchaikovsky, o longa-metragem estrelado por ninguém menos que Natalie Portman acompanha uma jovem bailarina chamada Nina que faz parte de uma companhia de dança respeitada e bastante rígida. Ela logo se prepara para a audição para O Lago dos Cisnes, fazendo de tudo para conseguir o papel principal da Princesa Odette (que é transformada em um cisne branco por um terrível feiticeiro), seja por uma crua ambição que se esconde atrás da faceta meiga, seja pela pressão da mãe, Erica (Barbara Hershey), uma bailarina frustrada que nunca conseguiu o protagonismo em qualquer apresentação de que participou. Apesar das melhores tentativas, Nina sofre de um mal: sua performance como Odette é apaixonante e impecável, mas ela parece não carregar a sensualidade e obscuridades necessárias para encarnar Odile, o exato oposto da personagem principal (o Cisne Negro).
É quase impossível discorrer sobre a gigantesca multiplicidade temática que toma forma no longa-metragem – visto que aglutina elementos do cinema aos da psicologia e da literatura em uma metamorfose assombrosa do que significa mergulhar na loucura. O ponto de enfoque (a transição de Nina de uma jovem sonhadora a uma força descomunal que fará tudo para vencer) é uma análise pessoal da condição humana, que já havia sido analisada por Aronofsky dez anos antes e ganharia uma epopeica reafirmação nos subestimados ‘Noé’ e ‘mãe!’, lançados pouco depois. Mais do que isso, é notável a paixão do cineasta pelo conflito do indivíduo com a ameaça iminente de um duplo que não se concretiza e que, de alguma maneira, traz à tona os nossos medos mais profundos.
A arte do ballet posa como uma faca de dois gumes: um espetáculo de tirar o fôlego para aqueles que o veem e um processo exaustivo da busca pela perfeição para aqueles que o performam. Nina está exilada na necessidade de provar para si mesma que consegue – e mais do que isso, que não é apenas uma mulher controlada pela mãe e pelo diretor da companhia em que dança. Mas o problema é que Nina não confia em si mesma e deixa que a inexplicável possibilidade de perder o papel de Odette a lance numa insana espiral de incerteza e descrença. Ora, a veterana Beth (Winona Ryder) chega a confrontá-la depois que perde o protagonismo para a personagem de Portman: “ele sempre disse que você era uma menininha frígida”, ela comenta, fazendo referência ao diretor da companhia, Thomas (Vincent Cassel).
Mesmo depois de Thomas ter acreditado que ela faria um trabalho esplendoroso, Nina continua a enfrentar problemas – e as coisas se agravam com a chegada da exuberante e despreocupada Lily (Mila Kunis no ápice de sua carreira), que foi escalada por Thomas para ser a substituta (um movimento clássico de grandes apresentações teatrais que serve para permitir que o show continue caso haja alguma fatalidade). Mas Nina, absorta em uma síndrome de perseguição que vai drenando sua inocência e a transformando numa reencarnação do cisne negro, acredita piamente que Lily quer roubar seu lugar de destaque na companhia e fará de tudo para impedir que ela entregue seu melhor.
A ideia do duplo (ou doppelgänger, no original em alemão) é um conceito explorado na cultura mundial há séculos e data de tempos medievais, posando como agouro, má sorte ou até mesmo a existência de um “gêmeo do mal” que representa nossas piores características. Não pensando muito longe na indústria do entretenimento, Jordan Peele explorou ad nauseam esse signo com o elogiado terror ‘Nós’, estrelado por Lupita Nyong’o. Mas, aqui, o duplo ganha um formato diferente – mais precisamente na dualidade vista entre Lily e Nina, como já mencionado: enquanto esta é vista como uma mulher sem o pleno controle de tudo o que tem para oferecer, aquela demonstra uma desinibição assustadora e que a torna uma ameaça para uma protagonista que, no final das contas, não tem nada a temer.
Não é surpresa, pois, que cada engrenagem meticulosamente arquitetada por Aronofsky culmine em uma chocante série de reviravoltas que tiram o fôlego do público. Nina, embebida na ingenuidade de Odette, é forçada a enfrentar Lily, pintada na forma implacável de Odile; em um acesso de raiva e de frustração (algo que já vinha sido premeditado desde os minutos iniciais do longa-metragem), ela utiliza um pedaço de vidro para se livrar de sua nêmese, absorvendo, enfim, o Cisne Negro e transformando-se na parte complementar de sua personalidade em uma apresentação impecável e digna de aplausos. O problema é que, na verdade, Nina enfrentou a si mesma, movida pela loucura imanente e quase etérea do sucesso desmedido e materializando o embate entre a realidade e a ficção num vórtice caudaloso de vitória e derrota.
Por fim, prestes a se livrar de toda a culpa e todos os medos (mas não sem a agridoce sensação de ambivalência), Nina se despede de si mesma ao proferir as últimas palavras: “eu fui perfeita”.