domingo , 22 dezembro , 2024

Dica de Filme | ‘1922’ é uma ótima adaptação do conto de Stephen King que merece ser conferida na Netflix

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Stephen King possui uma identidade única em seus escritos. Afinal, apesar de ser considerado o mestre do terror, suas narrativas não se restringem às saídas clichês de obras similares, principalmente no tocante aos arcos de seus personagens. E mesmo que peque na resolução das histórias, o contexto geral e a arquitetura de uma atmosfera inebriante, envolvente e visceral é sempre alcançada com grande maestria – salvo alguns romances. Em 1922, um dos contos que formam o compilado intitulado Escuridão Total sem Estrelas’, King nos apresenta a uma pacata e rudimentar família rural que se vê num dilema a priori fácil de ser resolvido, mas que se transforma numa ruína existencial viciosa e que divaga sobre até que ponto uma pessoa está disposta a ir para conseguir o que deseja.

É inegável dizer que 2017 se tornou o ano do autor. Inúmeras de suas obras foram adaptadas para o cinema neste ano e, apesar do fracasso de A Torre Negra, a maioria das releituras para o cinema e para o serviço de streaming surpreenderam os espectadores mais céticos e fãs de carteirinhas dos clássicos do século passado, como Carrie – A Estranha’ e O Iluminado. Felizmente, parece que a Netflix, conhecida por sua gama extensa de conteúdo original, assim como o diretor Andy Muschietti, parecem ter entendido o teor das obras de King e conseguiram traduzir em sequências imagéticas tensas e muito bem coreografadas o que queríamos ver desde o princípio.



Depois do sucesso de Jogo Perigoso, a plataforma resolveu investir nesta mais nova adaptação: o conto homônimo, transformado em longa-metragem, gira em torno do fazendeiro Wilfred James (Thomas Jane), um personagem calculista e inexpressivo que mantém todas as suas frustrações guardadas para si mesmo ao invés de mostrá-las para quem quiser. Ele é o patriarca de uma família em constante conflito, também formado pela esposa Arlette (Molly Parker em uma de suas melhores atuações desde House of Cards) e o filho Henry (Dylan Schmid). Esposa e marido acabam por discordar em inúmeros assuntos, principalmente no tocante às terras herdadas por ela após o falecimento da tia. Tal acontecimento mostra uma clara distinção entre os objetivos dos dois personagens: Arlette deseja abandonar sua vida primitiva e se tornar independente num cenário urbano – Omaha, para ser mais exato -, onde poderá abrir sua boutique e tornar-se o que sempre quis ser: uma empreendedora.

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As coisas sairiam com o planejado se Wilfred não mantivesse relações estritas com a terra em que moram – um casarão centrado em meio a quarenta hectares de plantação. Não sabemos exatamente quais são os motivos através dos quais ele nega a decisão da esposa, mas não precisamos, para falar a verdade. A única coisa a entender é que essa discordância é o motivo principal que o leva a se tornar um homem manipulador e que começa a bombardear a frágil e leviana mente do filho com ideias para ficarem naquele lugar – incluindo utilizar um possível romance entre o rapaz e Shannon (Kaitlyn Bernard), filha da família vizinha que nutre um sentimento crescente por Henry.

O ápice do primeiro ato é a concepção de um plano de assassinato que, obviamente, culmina na morte da mãe. Uma sequência expositiva que envolve sangue, luta e gritos abafados. Eventualmente, Arlette acaba com a garganta cortada, e Wilfred e seu filho correm para jogar seu corpo no poço inutilizado da fazenda, tentando literalmente enterrar o segredo que terão que carregar para o resto da vida. Como toda boa história de suspense, os personagens têm certeza absoluta de que seus problemas acabaram – mas na verdade, esse evento é apenas o ponto inicial de um thriller psicológico que os leva a cometer uma série de autoflagelações e reflexões destrutivas sobre o propósito de terem mantido a casa, visto que todos estão afundados em dívidas e não têm como mantê-la por completo.

A identidade imagética parece pegar emprestado alguns elementos estéticos de Réquiem para um Sonho. Afinal, a ascensão e a queda dos protagonistas segue as estações do ano, começando com a primavera, durante a qual a câmera é mais dinâmica e utiliza planos mais gerais para mostrar uma paleta vibrante e uma iluminação difusa que envolve eles e a própria casa, e termina numa estética mais intimista engolfada nos tons monocromáticos do branco e do preto – ou seja, no momento em que Wilfred atinge o fundo do poço e resolve se abrir quanto à verdade, a qual, segundo ele, “sempre acaba aparecendo”.

Henry, sem sombra de dúvida, tem o arco mais conturbado. Após entrar em um processo de negação e aceitação pelo que aconteceu, o garoto mergulha em um trágico coming-of-age que o transforma num indivíduo amadurecido pelas razões erradas. Sua caracterização é acompanhada também pelo decorrer do ano: ele permanece constantemente ofuscado pelo pai e pela mãe, ocultado por uma luz forte e que o impede de ter sua própria identidade. Com a passagem do verão e a chegada do outono, ele começa a entender o que fez e acaba engravidando Shannon, admitindo para si mesmo uma responsabilidade para a qual não estava preparado e criando uma couraça a priori intransponível, mas que depois se mostra tão frágil quanto uma garrafa de cristal. Em meados do terceiro ato, ambos são castigados pela nevasca e pelas escolhas erradas – o casal, que se autointitula “Os Pombinhos Assassinos”, encontra a salvação num estilo contemporâneo e shakespeariano à la Romeu e Julieta, cometendo um ato de sacrifício que consiga salvar o amor que sentem um pelo outro.

Muitos podem encarar 1922 como uma narrativa sobrenatural, mas na verdade, a trama principal tem como premissa os frutos de uma vingança desmedida e as consequências do agir compulsório. Wilfred fica tão cego por ser enfrentado pela esposa que não vê outras possibilidades para superar o obstáculo que enfrenta, abraçando a primeira oportunidade que tem de tirar do caminho alguém que passou a odiar, sem pensar no que isso poderia impactar na vida daqueles ao seu redor.

O problema do longa é, mais uma vez, seu final. King parece não ter uma mão muito firme para a resolução dos conflitos, valendo-se de saídas previsíveis para os personagens e que parecem extraídos de uma vertente insondável de deus ex machinas. E esses deslizes poderiam não ter tanto impacto, se a condução do diretor Zik Hilditch não prezasse pela construção de uma atmosfera tensa, pautada em uma montagem lenta e perscrutada por uma trilha animalesca e desafinada, servindo como extensão psíquica da conturbação de Wilfred. Apesar desse cuidado narrativo, as sequências angustiantes não têm justiça feita com o término do último ato, o qual dá ao protagonista algo que já esperamos desde o primeiro minuto: a redenção pela morte.

Essa subestimada adaptação do universo literário de King tem os seus problemas, mas é satisfatória em sua maior parte. Já entendemos que o terror das obras do autor definitivamente não é o convencional, e se alastra para outras camadas do medo e das falhas humanas, entregando uma tragédia de gênero interessante e até mesmo medonha.

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Thiago Nollahttps://www.editoraviseu.com.br/a-pedra-negra-prod.html
Em contato com as artes em geral desde muito cedo, Thiago Nolla é jornalista, escritor e drag queen nas horas vagas. Trabalha com cultura pop desde 2015 e é uma enciclopédia ambulante sobre divas pop (principalmente sobre suas musas, Lady Gaga e Beyoncé). Ele também é apaixonado por vinho, literatura e jogar conversa fora.

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É inegável dizer que 2017 se tornou o ano do autor. Inúmeras de suas obras foram adaptadas para o cinema neste ano e, apesar do fracasso de A Torre Negra, a maioria das releituras para o cinema e para o serviço de streaming surpreenderam os espectadores mais céticos e fãs de carteirinhas dos clássicos do século passado, como Carrie – A Estranha’ e O Iluminado. Felizmente, parece que a Netflix, conhecida por sua gama extensa de conteúdo original, assim como o diretor Andy Muschietti, parecem ter entendido o teor das obras de King e conseguiram traduzir em sequências imagéticas tensas e muito bem coreografadas o que queríamos ver desde o princípio.

Depois do sucesso de Jogo Perigoso, a plataforma resolveu investir nesta mais nova adaptação: o conto homônimo, transformado em longa-metragem, gira em torno do fazendeiro Wilfred James (Thomas Jane), um personagem calculista e inexpressivo que mantém todas as suas frustrações guardadas para si mesmo ao invés de mostrá-las para quem quiser. Ele é o patriarca de uma família em constante conflito, também formado pela esposa Arlette (Molly Parker em uma de suas melhores atuações desde House of Cards) e o filho Henry (Dylan Schmid). Esposa e marido acabam por discordar em inúmeros assuntos, principalmente no tocante às terras herdadas por ela após o falecimento da tia. Tal acontecimento mostra uma clara distinção entre os objetivos dos dois personagens: Arlette deseja abandonar sua vida primitiva e se tornar independente num cenário urbano – Omaha, para ser mais exato -, onde poderá abrir sua boutique e tornar-se o que sempre quis ser: uma empreendedora.

As coisas sairiam com o planejado se Wilfred não mantivesse relações estritas com a terra em que moram – um casarão centrado em meio a quarenta hectares de plantação. Não sabemos exatamente quais são os motivos através dos quais ele nega a decisão da esposa, mas não precisamos, para falar a verdade. A única coisa a entender é que essa discordância é o motivo principal que o leva a se tornar um homem manipulador e que começa a bombardear a frágil e leviana mente do filho com ideias para ficarem naquele lugar – incluindo utilizar um possível romance entre o rapaz e Shannon (Kaitlyn Bernard), filha da família vizinha que nutre um sentimento crescente por Henry.

O ápice do primeiro ato é a concepção de um plano de assassinato que, obviamente, culmina na morte da mãe. Uma sequência expositiva que envolve sangue, luta e gritos abafados. Eventualmente, Arlette acaba com a garganta cortada, e Wilfred e seu filho correm para jogar seu corpo no poço inutilizado da fazenda, tentando literalmente enterrar o segredo que terão que carregar para o resto da vida. Como toda boa história de suspense, os personagens têm certeza absoluta de que seus problemas acabaram – mas na verdade, esse evento é apenas o ponto inicial de um thriller psicológico que os leva a cometer uma série de autoflagelações e reflexões destrutivas sobre o propósito de terem mantido a casa, visto que todos estão afundados em dívidas e não têm como mantê-la por completo.

A identidade imagética parece pegar emprestado alguns elementos estéticos de Réquiem para um Sonho. Afinal, a ascensão e a queda dos protagonistas segue as estações do ano, começando com a primavera, durante a qual a câmera é mais dinâmica e utiliza planos mais gerais para mostrar uma paleta vibrante e uma iluminação difusa que envolve eles e a própria casa, e termina numa estética mais intimista engolfada nos tons monocromáticos do branco e do preto – ou seja, no momento em que Wilfred atinge o fundo do poço e resolve se abrir quanto à verdade, a qual, segundo ele, “sempre acaba aparecendo”.

Henry, sem sombra de dúvida, tem o arco mais conturbado. Após entrar em um processo de negação e aceitação pelo que aconteceu, o garoto mergulha em um trágico coming-of-age que o transforma num indivíduo amadurecido pelas razões erradas. Sua caracterização é acompanhada também pelo decorrer do ano: ele permanece constantemente ofuscado pelo pai e pela mãe, ocultado por uma luz forte e que o impede de ter sua própria identidade. Com a passagem do verão e a chegada do outono, ele começa a entender o que fez e acaba engravidando Shannon, admitindo para si mesmo uma responsabilidade para a qual não estava preparado e criando uma couraça a priori intransponível, mas que depois se mostra tão frágil quanto uma garrafa de cristal. Em meados do terceiro ato, ambos são castigados pela nevasca e pelas escolhas erradas – o casal, que se autointitula “Os Pombinhos Assassinos”, encontra a salvação num estilo contemporâneo e shakespeariano à la Romeu e Julieta, cometendo um ato de sacrifício que consiga salvar o amor que sentem um pelo outro.

Muitos podem encarar 1922 como uma narrativa sobrenatural, mas na verdade, a trama principal tem como premissa os frutos de uma vingança desmedida e as consequências do agir compulsório. Wilfred fica tão cego por ser enfrentado pela esposa que não vê outras possibilidades para superar o obstáculo que enfrenta, abraçando a primeira oportunidade que tem de tirar do caminho alguém que passou a odiar, sem pensar no que isso poderia impactar na vida daqueles ao seu redor.

O problema do longa é, mais uma vez, seu final. King parece não ter uma mão muito firme para a resolução dos conflitos, valendo-se de saídas previsíveis para os personagens e que parecem extraídos de uma vertente insondável de deus ex machinas. E esses deslizes poderiam não ter tanto impacto, se a condução do diretor Zik Hilditch não prezasse pela construção de uma atmosfera tensa, pautada em uma montagem lenta e perscrutada por uma trilha animalesca e desafinada, servindo como extensão psíquica da conturbação de Wilfred. Apesar desse cuidado narrativo, as sequências angustiantes não têm justiça feita com o término do último ato, o qual dá ao protagonista algo que já esperamos desde o primeiro minuto: a redenção pela morte.

Essa subestimada adaptação do universo literário de King tem os seus problemas, mas é satisfatória em sua maior parte. Já entendemos que o terror das obras do autor definitivamente não é o convencional, e se alastra para outras camadas do medo e das falhas humanas, entregando uma tragédia de gênero interessante e até mesmo medonha.

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