O diretor Richard Linklater sempre teve a incrível de habilidade de transformar todas as suas obras em análises interessantes e profundas acerca do espírito humano, fosse com os dramas românticos ‘Antes do Amanhecer’ e ‘Antes do Por do Sol’, fosse com o longo processo de gestação do coming-of-age ‘Boyhood’, que eventualmente ganhou a atenção da crítica e do público por seu visceral retrato de amadurecimento de um jovem rapaz. Em 2017, o cineasta retornou mais uma vez às telonas com mais uma investida no gênero em questão, agora migrando para as preocupações e as tristezas de um angustiado pai que recebe a triste notícia de que seu filho morreu em campo de batalha com ‘A Melhor Escolha’ – e ainda que esse recente longa não esteja completamente lapidado, é muito fácil observá-lo como um clássico do “panteão de Linklater”.
A trama se inicia se forma bem fluida, mostrando o pai em questão, Larry “Doc” Shepherd (Steve Carell) chegando a um decadente e minúsculo bar em Nova York para reencontrar um velho amigo de guerra – que aparentemente não o reconhece e continua divagando acerca de inúmeros assuntos irrelevantes. Já aqui, percebemos um contraste entre dois dos personagens principais que se mantém em um gradativo nível de complementaridade e paradoxo: enquanto Doc é mais introspectivo, talvez pelos traumas da Guerra do Vietnã, e reside em um patamar mais intimista, seu colega Sal Nealon (Bryan Cranston) definitivamente não tem papas na língua e parece estar possuído por um incansável espírito jovem e por vezes infantiloide – ainda que os cabelos brancos e a barriga saliente denunciem sua real idade.
Como já dito, o produto final tem os seus defeitos, incluindo um tempo cênico muito maior que o necessário. Entretanto, Linklater sabe muito bem orquestrar a sua obra a ponto de criar momentos preciosos para conhecermos melhor cada uma das personalidades apresentadas – e já faz isso no primeiro ato: em conjunto com um incrível roteiro assinado por ele mesmo e por Darryl Ponicsan, as sequências seguem um ritmo único e envolvente que reafirma a profundidade das falas e que consegue oscilar entre drama e comédia de modo preciso e natural. Além disso, toda a estrutura narrativa também procura exercer sua potencialidade máxima ao criar um escopo generalizado – a morte do filho de Doc – e pequenos núcleos entre os nossos heróis para levá-los a uma reflexão, ainda que não tão profunda assim, acerca do passado, do presente e até mesmo do futuro.
A cronologia do filme é linear e não se utiliza de artifícios técnicos para fornecer uma atmosfera nostálgica, como montagens paralelas, saltos temporais ou anacronismos cênicos: tudo tem seu início, meio e fim, sem floreios desnecessários e que deixam a roupagem da obra o mais verossímil possível. Afinal, ainda que Doc e seus colegas viajem para comparecer ao funeral do jovem soldado da Marinha, esse evento é o incidente incitante para que todos recuperem laços desfeitos há muito tempo e resolvam algumas pendências que eventualmente insurgem, incluindo certas mentiras que os coronéis e generais do Exército contam para preservar a memória daqueles “mortos em combate”.
É claro que Carell e Cranston já trazem uma química inigualável para as telonas, mas é Laurence Fishburne quem definitivamente rouba a cena com uma construção arquetípica tragicômica aplaudível. Ele é o terceiro integrante do grupo de soldados que lutou junto há mais de trinta anos, e que abandonou o seu passado para se tornar o Reverendo Richard Mueller em sua cidade local – e posso dizer sem sombra de dúvida que o encontro entre essas figuras é o ápice da trama. Sendo assim, temos a reunião de três personagens conflituosos – um pai melancólico, um bartender fanfarrão e um pastor extremamente devoto à sua profissão espiritual – que compartilham memórias inesquecíveis e que reacendem uma chama de amizade que sempre esteve ali, mas permaneceu adormecida conforme cada um deles embarcou em uma jornada diferente.
O que poderia se tornar um excessivo uso dos convencionalismos construtivos também é deixado de lado para uma investida interessante. Linklater sabe como manusear a câmera a ponto de não deixar as sequências verborrágicas mais monótonas do que poderiam ser – e até busca algumas cruas referências de David Lynch para construir a sua própria identidade. Os planos seguem uma continuidade muito interessante, carregada com certas metáforas para o problema que enfrentam e que seguem até mesmo o padrão estético – principalmente pelo uso da paleta de cores que passa de uma inebriante neutralidade do marrom e do preto para a angústia constante e cíclica de cores mais frias (cujo ápice é alcançado com a chegada do terceiro ato).
Há um momento em específico entre Sal e Richard que, pessoalmente, tornou-se o meu favorito: a cena ocorre dentro de um caminhão de mudanças e os dois começam a debater sobre a existência de um Deus todo-poderoso e sobre como sua justiça divina na verdade pode ser encarada como “injustiça”; ora, há até um momento em que o personagem de Cranston brinca de forma irreverente sobre quando chegará ao Paraíso e falará poucas e boas para o nosso Criador – então não há como deixar ela passar batido. E além de tudo isso, essa pequena fatia do segundo ato serve para dar introdução ao modo como os protagonistas irão lidar com as mentiras que lhes foram contadas (o filho de Doc não foi morto em campo, na verdade, mas sim durante um happy hour qualquer) e como poderão consertar um erro do passado.
Há seis anos, Linklater retornava para suas raízes humanitárias e humanizadoras mais uma vez com essa dramédia de guerra e, mesmo com os equívocos estruturais, consegue entregar-se a uma comovente narrativa que só consegue ser o que é pelo incrível trabalho de seu elenco de ponta, frisando as rendições performáticas do duo Cranston e Fishburne.