Há uma espécie de sensibilidade duplicada no talento de Céline Sciamma refletida com clareza e paixão ardentes em seus longas-metragens: desde o honrável trabalho feito em ‘Les Revenants’ (que ganhou uma versão hollywoodiana pré-fabricada) e sua investida no revolucionário e cândido ‘Tomboy’ até as ácidas críticas promovidas por Garotas, a diretora francesa sempre conseguiu transmitir suas necessárias perspectivas para as telonas, invadindo o cinema mainstream e tornando-se um dos nomes mais prolíficos da indústria contemporânea. E é claro que, como espectadora dos recentes e problemáticos eventos, ela retornaria aos holofotes com o lançamento do incrível ‘Retrato de uma Jovem em Chamas’, cuja temática ambígua é explorada com crueza ao longo dos mais de 120 minutos.
O drama histórico parte de uma premissa simples o bastante para ser absorvido pelo público – e metafórica demais para que sua simbologia seja aproveitada pelos céticos: ambientada na França litorânea do século XVII, Marianne (Noémie Merlant), uma talentosa pintora, é contratada por uma importante Condessa (Valeria Golino) para pintar o retrato de sua única filha, Héloïse (Adèle Haenel). Entretanto, o trabalho é mais difícil do que aparenta, visto que a primogênita está prometida para um homem milanês e recusa-se a posar, desejando retomar algum controle sobre sua vida predestinada; dessa forma, Marianne deve fingir ser uma dama de companhia e, às escondidas, realizar a pintura.
Sciamma poderia muito bem se render a qualquer outra produção fílmica dos últimos anos e focar em um romance previsível pela própria estética imprimida; entretanto, a cineasta nos guia através de um relacionamento inesperado entre as duas protagonistas enquanto desenvolve temas analíticos, flagelados com uma engessada e inescapável construção social que premedita a ruína desse enlace febril. Marianne, tímida e calada a princípio, solta-se à medida que passa a conhecer Héloïse, nutrindo de certa empatia por sua rebelde amargura e, dessa forma, colocando-se em seu lugar até se transformar em uma extensão espiritual.
Não é surpresa que a resolução do primeiro ato vem cedo demais, ao mesmo tempo que pavimenta o caminho para o restante da narrativa. A pintora, depois de terminar o árduo trabalho, vai até sua empregadora e pede para que conte toda a verdade. Entretanto, o tiro sai pela culatra quando, esperando uma retaliação por parte da jovem, tem o trabalho recebido com anêmica desaprovação e uma troca de farpas incrivelmente construída pelo ritmado roteiro. Marianne, dessa forma, destrói o quadro ao borrar o rosto da “musa” – cujo significado para o microcosmos e para o arco da personagem vão para muito além de um simples acesso de raiva: ela se sente culpada por não capturar a magnética essência de sua adorada e traz uma explicação do motivo de tantos outros artistas também não conseguirem o feito.
O filme dá dicas das inspirações que resgata de clássicas histórias, permitindo que elas estejam explícitas no pano de fundo e, em contradição, fundem-se a um pastiche iconográfico que transforma a obra em si numa rendição metalinguística de peso dramático chocante. O mito de Orfeu e Eurídice é a base que leva o casal a um patamar místico e trágico: assim como Orfeu, Marianne parece viajar a uma representação palpável do Inferno para resgatar alguém por quem, diferente do herói grego, não pretendia se apaixonar. Infelizmente, ambas as personas se veem num caminho rumo à ruína, olhando para trás vezes demais para que conseguissem o amor eterno.
As inclinações metafísicas participam de um intimismo cênico capturado com sabedoria por Sciamma. A artista, afeiçoando-se à figura de Héloïse, passa a cuidar dela e a enxergá-la dentro de um prospecto de pura felicidade – isso é, até que a Condessa volte de sua viagem e leve o retrato pronto para o futuro marido. É por esse motivo mesmo que Marianne passa a ver uma visão idealizada e tradicionalista de sua amada na escuridão dos longos corredores do casarão, insurgindo numa redoma fantasmagórica com um longo e inebriante vestido de casamento branco (cujos temores se concretizam pouco antes do catártico grand finale).
Movidas pela enérgica peça ‘As Quatro Estações’, de Vivaldi, as protagonistas são convidadas a uma última dança, coreografada com beleza teatral pela diretora, e até mesmo nos fazem aceitar esse convite, engolfando-nos em uma melódica jornada a um final que se exila nas desafortunadas andanças de uma época marcada por morais conservadoras. É dessa forma que ‘Retrato de uma Jovem em Chamas’ encontra o seu duplo, sua ambiguidade proposital que transforma-se num solene e agonizante solilóquio romântico.