Nos anos 1980, a então primeira-ministra do Reino Unido, Margaret Thatcher, liderava um governo conservador para aprovar a uma série de leis que proibiam, por toda a Grã-Bretanha, a “promoção da homossexualidade”. De acordo com Thatcher, os grupos ativistas queer desejavam que livros sobre o ensinamento e a normalização da homossexualidade fossem lidos nas escolas – que não eram verdade, e sim uma artimanha para diminuir a luta LGBTQIA+ à época em que a epidemia de HIV/AIDS era erroneamente associada apenas à comunidade. Conhecida como Seção 28 ou Cláusula 28, a iniciativa de Thatcher aumentou o estigma e a marginalização dessa minoria social, embargando fundos de apoio a órgãos de proteção queer e dando origem a diversas manifestações contrárias à preconceituosa visão da Dama de Ferro e de seus seguidores.
Em 2022, a diretora e roteirista Georgia Oakley resolveu nos levar de volta à época em questão com ‘Blue Jean’, que chegou ao Brasil um ano depois de sua estreia oficial no Festival de Veneza. Aqui, a cineasta nos convida a conhecer Jean (Rosy McEwen), uma jovem professora de educação física que esconde quem realmente é em seu ambiente de trabalho – mas se vê ameaçada pela presença de uma aluna que cruza com ela em um bar gay. Temendo pelo futuro de sua profissão e pela própria integridade, Jean não sabe o que fazer e não tem forças para lutar contra um opressor sistema que deseja apagá-la da história, levando-a a enfrentar o que ela, de fato, quer para sua vida.
É muito provável que o longa-metragem não tenha passado por seu radar; entretanto, em um período em que a história se repete e que governos extremistas ao redor do mundo voltam a atacar os direitos da comunidade LGBTQIA+. Ora, Jean se encontra dentro de uma panela de pressão, em que ela deve tomar uma decisão de permanecer escondida e se mesclar com a parcela da população que não sofre com as políticas adotadas pelo parlamento inglês, ou assumir quem é e ter a oportunidade de ver o mundo mudar bem diante dos seus olhos. É notável como a narrativa, inclusive, parece espelhar as investidas pró-fascistas do parlamento italiano, em que a primeira-ministra Giorgia Meloni apresenta um prospecto medieval para os indivíduos queer do país.
A ideia por trás de Oakley é, como já mencionado, mostrar que a história é cíclica e que, de alguma forma ou de outra, sempre regressamos a um ponto em comum. Em um momento de instabilidade político-econômica, é comum que aqueles no poder se voltem contra as minorias, talhando-as como as verdadeiras culpadas. Entretanto, em vez de se respaldar na narrativa a partir de uma perspectiva militante, a diretora apresenta uma linha em que alguém com medo deve fazer as próprias escolhas – e sabemos como o medo é uma poderosa arma de isolamento e solidão. Dentro desse complexo espectro, McEwen é a grande estrela de um drama coming-of-age deliciosamente bem arquitetado, trazendo vida a uma personagem íntima e pessoal que traduz os temores da Inglaterra dos anos 80.
A atriz é auxiliada por um trabalho técnico impecável, desde os enquadramentos claustrofóbicos e cerceadores à fotografia, cuja mistura da melancolia e da esperança é inenarrável. Jean parece imóvel dentro de uma gaiola invisível, sendo seguida pelos tons repetitivos do azul, vivendo um dia de cada vez e dentro de uma rotina inescapável. Seus momentos de glória aparecem quando ela se encontra com as amigas e com a namorada, Viv (Kerrie Hayes), que não teme a represália por ser quem é. Ao adentrar o mundo a que de fato pertence, Jean é tomada pelo amarelo, premeditando a jornada de autoaceitação pela qual passará muito em breve.
O gatilho para essa “aventura” começar vem com Lois (Lucy Halliday), uma de suas alunas que, em determinada noite, vai ao mesmo bar que Jean e Viv frequentam. Ela, então, resolve se mover com mais cuidado do que antes, afastando-se da garota para que o segredo não seja revelado. Mais do que isso, Jean está no meio de uma guerra intergeracional em que Lois demonstra ser mais forte frente aos obstáculos do que ela; afinal, se Jean se resignou perante o que lhe foi tirado, ela não tem o direito de arrastar a menina com ela.
‘Blue Jean’ já se consagra como uma das melhores produções LGTBQIA+ não apenas da década, mas do século; para além da performance certeira de McEwen e do restante do elenco, os méritos do projeto vão para Oakley, cuja estreia no circuito cinematográfico é estonteante, majestosa e tocante em todos os níveis possíveis.