A cultura mexicana talvez seja uma das mais extensas e complexas dentro do panteão mundial. Além de resgatar inúmeros elementos folclóricos em uma amálgama que remonta a glória dos povos greco-romanos, ela se permite a ramificar seu legado para todas as épocas e povos, emergindo como uma forma pacífica de união e sabedoria – tudo pautado em belas e bem estruturadas metáforas que conversam com a importância da memória, da família e do altruísmo.
É claro que ‘Viva – A Vida É uma Festa’ traz de forma livre de pré-conceitos e estigmas um dos festivais mais adorados por esse povo, o Dia de los Muertos (Dia dos Mortos); mas antes da investida Disney/Pixar, Guillermo del Toro já nos havia presenteado com um retorno às próprias raízes latinas para nos entregar uma perspectiva única e épica com ‘Festa no Céu’. A animação, aparentemente superficial e apenas destinada para um público mais infantil e sem senso crítico, na verdade desenrola-se de modo muito belo através de uma investida mais contemporânea e pincelada com elementos da cultura pop.
A narrativa gira em torno de um grupo de crianças que visita um museu de história antiga e, através das palavras de uma intimidante e envolvente guia, passa a conhecer um conto milenar intitulado O Livro da Vida. A priori, a obra produzida por Del Toro e dirigida por Jorge R. Gutiérrez mergulha nas técnicas de animação 3D para fornecer uma identidade diferenciada quando justaposta à trama paralela. No “mundo real”, por assim dizer, os traços são mais suaves e desbotados, e tal concepção emerge justamente como base para reafirmar toda a magia do “mundo sobrenatural”, cujas técnicas migram para algo rústico e bruto. Dentro desse segundo cosmos, o épico que nos remonta às novelas de cavalaria da Idade Média traz como protagonistas três amigos unidos pelo mesmo ideal – lutar sem desistir -, Manolo, Maria e Joaquin. Todos são dotados por personalidades diferenciadas: Manolo é um músico sonhador fadado a seguir por obrigação os passos de sua família, destinado a tornar-se um exímio toureiro; Maria é uma criança rebelde que não se encaixa nos padrões patriarcais do vilarejo em que mora, além de ser a força-motriz dos conceitos de liberdade e igualdade que permeiam o longa; Joaquin é o arquétipo do herói corajoso, do soldado protetor que segue também os passos do pai e jura defender os fracos e inocentes de forças superiores.
O interessante de tudo isso é que esse gradativo e misterioso triângulo amoroso segue os mesmos parâmetros da escola literária Romântica, principalmente se pensarmos em obras como ‘A Moreninha’ e ‘A Dama das Camélias’: o escopo em questão perdura por mais de vinte anos, período dentro do qual Maria se afasta para morar na Espanha como forma de permitir que os dois garotos sigam seus destinos – não escolhidos por si mesmos, mas sim pela endossada sabedoria de figuras mais velhas e paternais – e entram em um arco de coming-of-age totalmente distorcido. Não é nenhuma surpresa que, eventualmente, o trio se reencontre de modo tenso: a jovem, agora dublada pela incrível Zoë Saldaña, é o motivo de confronto entre Manolo e Joaquin, interpretados por Diego Luna e Channing Tatum respectivamente, os quais lutam para conquistá-la.
Como estamos mergulhados dentro de uma narrativa épica, sabemos que os personagens mortais não são exatamente responsáveis pela trajetória na qual estão. A mera ilusão de livre-arbítrio na verdade é respaldada por duas figuras clássicas da mitologia mexicana e que emergem como divindades humanizadas e dotadas de características emocionais as quais as deixam mais próximas do público: a Morte (Kate del Castillo) e Xibalba (o sempre bem-vindo Ron Perlman). Desde o primeiro momento em que os vemos, sentimos a instantânea química que apenas se fortalece conforme a trama se desenrola; os dois personagens têm seu design pautados no paradoxo; enquanto Morte é toda delineada com um longo vestido vermelho-vivo, contrastando com a pele monocromática, responsável pelo Mundo dos Relembrados, Xibalba tem cores mais frias e sombrias que conversam com sua condição de regente do Mundo dos Esquecidos.
O duo, apesar do patamar transcendental, cai nos erros das criaturas que juraram proteger e deixam que sua ambição os guie através de um interessante acordo: ambos terão seus próprios peões, encarnados pelas figuras de Manolo e Joaquin, e dependendo de quem conseguir conquistar o coração de Maria, ditará como cada um dos mundos espirituais será comandado. E levando em consideração a personalidade competitiva de Xibalba, é claro que ele não terá escrúpulos e fará o que estiver ao alcance para vencer o desafio, enquanto a Morte espera pacientemente que seu “escolhido” passe por todos os obstáculos que precisa.
Toda a escolha artística de ‘Festa no Céu’ traz uma nostalgia memorável das melhores obras de Del Toro. A utilização de cores vibrantes funde-se a planos geralmente abertos e que ressaltam a reafirmação do cosmos construído propriamente para o filme. O cenário urbano é, de forma irônica, quase onírica, enquanto o Mundo dos Relembrados é mais palpável por sua saturação. Acontece que a animação não emerge apenas como uma clássica jornada do herói, mas estende-se para os dias de hoje com rendições musicais que, mesmo que estejam inseridas em um escopo cultural próprio, são conhecidas por grande parte do público e quebram toda a magia e a inexorabilidade deste universo. Passando por 30 Seconds to Mars e retornando para a profunda voz de Elvis Presley, os personagens transformam o longa em um musical não-premeditado e nada convencional.
Em suma, ‘Festa no Céu’ é uma investida interessante para a complexa mitologia mexicana, oferecendo uma perspectiva diferente do que poderíamos imaginar à medida que emociona e transpassa uma cândida e honesta mensagem.