Em 1942, Walt Disney percebia que, para permitir o retorno da hegemonia exercida por seu país natal, precisava expandir os seus laços de amizade para países vizinhos, em especial àqueles das diversificadas Américas Central e do Sul, criando um relacionamento sociopolítico fértil e duradouro e que conversava com o panorama mundial do período final da II Grande Guerra. Apesar do exacerbado panfletarismo, o público foi introduzido a um dos personagens mais carismáticos com o longa-metragem intitulado ‘Alô, Amigos’ – basicamente uma clara saudação a uma futura e longa parceria ideológica -, o fabuloso Zé Carioca. E percebendo seu sucesso entre os fãs, o magnata do entretenimento resolveu investir um pouco mais nessa “nova” cultura a ser explorada pela indústria hollywoodiana com uma continuação, por assim dizer, que se torna superior que o original por diversos motivos.
Abandonando quase totalmente o hibridismo entre ficção e não-ficção da iteração predecessora, em ‘Você Já Foi à Bahia?’ temos uma narrativa mais redonda e mais envolvente justamente por esse afastamento da divisão em blocos. Em vez de realizar pequenos curtas-metragens que, no geral, funcionam como análises antropológicas de grupos sociais distintos, temos um protagonista animado – o nostálgico e ultra-cômica Pato Donald (Clarence Nash) recebendo singelos presentes de seus amigos latino-americanos. O primeiro ato emerge como um desnecessário prólogo que nos leva para os pampas argentinos e gira em torno de um jovem gaúcho que encontra um burro alado e o treina para vencer uma corrida; tal fatia da obra é interessante e até mesmo engraçada, mas em nada acrescente para compreendermos a complexidade do escopo geral.
As coisas ganham estabilidade com a dinâmica introdução do papagaio supracitado, pulando para fora de um livro pop-up cujo título é emprestado do nome do filme. Logo somos transportados para toda a cultura brasileira, ou ao menos parte dela, nos trejeitos malandros de Zé Carioca. Toda a sua construção resgata o “jeitinho” amigável que é conhecido pelo mundo inteiro e alastra-se até mesmo para a escolha da paleta de cores, que brinca com inúmeras cores complementares e cria um cenário que traduz em imagens a fauna e a flora brasileiras. Entretanto, ao invés de levar Donald para conhecer o Rio de Janeiro, Zé disserta acerca de seu saudosismo pela Bahia, uma terra centenária e que é palco de algumas das maiores singularidades de todos os tempos – incluindo uma beleza inigualável e o apreço pela música.
De certo modo, a animação peca em alguns aspectos, incluindo a representação do povo nordestino. Afinal, se estamos falando de cidades como Salvador, é claro que grande parte do povo não seria totalmente branco – e talvez esse seja o maior obstáculo enfrentado pela narrativa: ela preza demais pela aproximação do público norte-americano e cai nas ruínas do whitewashing, criando uma versão romantizada e estilizada de algo que socialmente não é correto. Apesar disso, não podemos deixar de sentir o incrível ritmo resgatado pelo time criativo com a música “Os Quindins de Iaiá”, trazendo ninguém menos que a ofuscada irmã de Carmen Miranda, Aurora, para as telas como forma de aumentar o talento da família.
Levando em consideração os quase noventas minutos de longa-metragem, é interessante notar como, ainda que não necessariamente faça menção a muitos elementos técnicos, ‘Você Já Foi à Bahia?’ é também uma visão documentarista. Entretanto, diferente de ‘Alô, Amigos’, como supracitado, o diretor Norman Ferguson percebe que, para conseguir envolver ainda mais seu público-alvo, precisa investir em uma identidade imagética psicodélica e que, de forma lúdica, atravesse um país de proporções continentais sem perder o fluido ritmo narrativo e estético. E é justamente desse modo que ele também consegue transpassar de forma quase imperceptível do Brasil para a incrível cultura mexicana ao introduzir mais um personagem além-mar: Panchito (Joaquin Garay).
O galo vermelho que representa, ainda que de modo estereotipado, a crescente visibilidade do México no panorama norte-americano, dialoga quase que intrinsecamente com a personalidade irreverente de Zé Carioca. Ambos se complementam pela escolha das cores que os compõe, pelos países que representam e por uma aliança política que é traduzida puerilmente pelas canções e por seus modos sedutores. E, seguindo o mesmo padrão da apresentação brasileira, temos a inserção de pequenos momentos em live-action que colocam Donald em uma hilária jornada para conhecer a fundo culturas tão distintas.
Não há muito mais o que falar sobre essa animação dos estúdios Disney. É claro que, por trás de toda a irreverência e o otimismo que os “três mosqueteiros” transmitem em um cenário muito bem construído por mãos extremamente capacitadas, esconde-se uma pontinha de perpetuação da Política da Boa Vizinhança; entretanto, não podemos tirar o mérito desse crescente império de realizar mais uma grandiosa obra que entra para seu panteão em um patamar considerável, ainda que seja ofuscada tanto por longas predecessores quanto pelos futuros.