sábado, abril 27, 2024

Dica de Filme | ‘Você Já Foi à Bahia?’, uma gema esquecida da Disney

Em 1942, Walt Disney percebia que, para permitir o retorno da hegemonia exercida por seu país natal, precisava expandir os seus laços de amizade para países vizinhos, em especial àqueles das diversificadas Américas Central e do Sul, criando um relacionamento sociopolítico fértil e duradouro e que conversava com o panorama mundial do período final da II Grande Guerra. Apesar do exacerbado panfletarismo, o público foi introduzido a um dos personagens mais carismáticos com o longa-metragem intitulado ‘Alô, Amigos’ – basicamente uma clara saudação a uma futura e longa parceria ideológica -, o fabuloso Zé Carioca. E percebendo seu sucesso entre os fãs, o magnata do entretenimento resolveu investir um pouco mais nessa “nova” cultura a ser explorada pela indústria hollywoodiana com uma continuação, por assim dizer, que se torna superior que o original por diversos motivos.

Abandonando quase totalmente o hibridismo entre ficção e não-ficção da iteração predecessora, em ‘Você Já Foi à Bahia?’ temos uma narrativa mais redonda e mais envolvente justamente por esse afastamento da divisão em blocos. Em vez de realizar pequenos curtas-metragens que, no geral, funcionam como análises antropológicas de grupos sociais distintos, temos um protagonista animado – o nostálgico e ultra-cômica Pato Donald (Clarence Nash) recebendo singelos presentes de seus amigos latino-americanos. O primeiro ato emerge como um desnecessário prólogo que nos leva para os pampas argentinos e gira em torno de um jovem gaúcho que encontra um burro alado e o treina para vencer uma corrida; tal fatia da obra é interessante e até mesmo engraçada, mas em nada acrescente para compreendermos a complexidade do escopo geral.

As coisas ganham estabilidade com a dinâmica introdução do papagaio supracitado, pulando para fora de um livro pop-up cujo título é emprestado do nome do filme. Logo somos transportados para toda a cultura brasileira, ou ao menos parte dela, nos trejeitos malandros de Zé Carioca. Toda a sua construção resgata o “jeitinho” amigável que é conhecido pelo mundo inteiro e alastra-se até mesmo para a escolha da paleta de cores, que brinca com inúmeras cores complementares e cria um cenário que traduz em imagens a fauna e a flora brasileiras. Entretanto, ao invés de levar Donald para conhecer o Rio de Janeiro, Zé disserta acerca de seu saudosismo pela Bahia, uma terra centenária e que é palco de algumas das maiores singularidades de todos os tempos – incluindo uma beleza inigualável e o apreço pela música.

De certo modo, a animação peca em alguns aspectos, incluindo a representação do povo nordestino. Afinal, se estamos falando de cidades como Salvador, é claro que grande parte do povo não seria totalmente branco – e talvez esse seja o maior obstáculo enfrentado pela narrativa: ela preza demais pela aproximação do público norte-americano e cai nas ruínas do whitewashing, criando uma versão romantizada e estilizada de algo que socialmente não é correto. Apesar disso, não podemos deixar de sentir o incrível ritmo resgatado pelo time criativo com a música “Os Quindins de Iaiá”, trazendo ninguém menos que a ofuscada irmã de Carmen Miranda, Aurora, para as telas como forma de aumentar o talento da família.

Levando em consideração os quase noventas minutos de longa-metragem, é interessante notar como, ainda que não necessariamente faça menção a muitos elementos técnicos, ‘Você Já Foi à Bahia?’ é também uma visão documentarista. Entretanto, diferente de ‘Alô, Amigos’, como supracitado, o diretor Norman Ferguson percebe que, para conseguir envolver ainda mais seu público-alvo, precisa investir em uma identidade imagética psicodélica e que, de forma lúdica, atravesse um país de proporções continentais sem perder o fluido ritmo narrativo e estético. E é justamente desse modo que ele também consegue transpassar de forma quase imperceptível do Brasil para a incrível cultura mexicana ao introduzir mais um personagem além-mar: Panchito (Joaquin Garay).

O galo vermelho que representa, ainda que de modo estereotipado, a crescente visibilidade do México no panorama norte-americano, dialoga quase que intrinsecamente com a personalidade irreverente de Zé Carioca. Ambos se complementam pela escolha das cores que os compõe, pelos países que representam e por uma aliança política que é traduzida puerilmente pelas canções e por seus modos sedutores. E, seguindo o mesmo padrão da apresentação brasileira, temos a inserção de pequenos momentos em live-action que colocam Donald em uma hilária jornada para conhecer a fundo culturas tão distintas.

Não há muito mais o que falar sobre essa animação dos estúdios Disney. É claro que, por trás de toda a irreverência e o otimismo que os “três mosqueteiros” transmitem em um cenário muito bem construído por mãos extremamente capacitadas, esconde-se uma pontinha de perpetuação da Política da Boa Vizinhança; entretanto, não podemos tirar o mérito desse crescente império de realizar mais uma grandiosa obra que entra para seu panteão em um patamar considerável, ainda que seja ofuscada tanto por longas predecessores quanto pelos futuros.

Mais notícias...

Thiago Nollahttps://www.editoraviseu.com.br/a-pedra-negra-prod.html
Em contato com as artes em geral desde muito cedo, Thiago Nolla é jornalista, escritor e drag queen nas horas vagas. Trabalha com cultura pop desde 2015 e é uma enciclopédia ambulante sobre divas pop (principalmente sobre suas musas, Lady Gaga e Beyoncé). Ele também é apaixonado por vinho, literatura e jogar conversa fora.

Siga-nos!

2,000,000FãsCurtir
370,000SeguidoresSeguir
1,500,000SeguidoresSeguir
183,000SeguidoresSeguir
158,000InscritosInscrever

ÚLTIMAS NOTÍCIAS

MATÉRIAS

CRÍTICAS