domingo , 22 dezembro , 2024

Dica de Série | ‘Cursed – A Lenda do Lago’ é uma divertida entrada do expansivo universo arturiano

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Há algo de mágico quando pensamos na mitologia do universo arturiano – sem querer ser redundante, é claro. A magia a que me refiro aqui é a capacidade do panteão fantástico ter se estabelecido em plena Idade Média e ter conseguido estender suas ramificações aos dias de hoje, com seus personagens e suas histórias fabulescas inspirando diversos autores contemporâneos a revisitá-los ou até a mesmo a desconstruí-los em busca de uma premissa diferenciada ou mimética. Equiparando-se ao poder inigualável da Odisseia’, de Homero, os contos acerca do Rei Arthur, de Morgana Le Fay, Uther Pendragon e de tantos outros clássicas criações da literatura (incumbidos com os ensinamentos católicos-apostólicos da época e da luta contra o mal) sempre tiveram um lugarzinho especial para os realizadores da esfera audiovisual – e 2020 não seria um ano diferente dos demais.

Cursed – A Lenda do Lago’ foi uma das mais recentes adições a essa saga infinita e, afastando-se do preciosismo masculinizado de tantas outras adaptações para os cinemas e para a televisão, a trama bebe do livro homônimo escrito por Thomas Wheeler e ilustrado pelo lendário Frank Miller. Produzida pela Netflix (que felizmente acerta em cheio com uma obra cujo trôpego começo não apaga as divertidas e chocantes incursões das quais se dispõe), a personagem central é a esquecida Nimue, primeira portadora da Excalibur conhecida pela alcunha de Senhora do Lago. Com seu nome sendo transmutado com o passar dos séculos, Nimue costuma ser retratada como a guardiã da Espada de Todos os Reis, ciente do perigo que ela representaria caso caísse nas mãos erradas. Entretanto, nessa nova epopeia, a protagonista, interpretada com afinco por Katherine Langford, é uma jovem garota que vê seu mundo se desmantelar bem à sua frente, cruzando caminhos com o perigoso artefato e com uma missão derradeira d entregá-la para Merlin, o Mago (Gustaf Skarsgård).



As novelas de cavalaria, produções escritas das quais as histórias arturianas provém, normalmente são contadas a partir das perspectivas de homens – cavaleiros templários ou feiticeiros poderosos sem quaisquer indícios de corrupção anímica que se unem para manter viva a mitologia cristã e combater aqueles que desejam espalhar o caos pelo mundo. Dessa forma, o maniqueísmo narrativo era o grande imperador de tais aventuras, colocando-os em patamares irretocáveis e inalcançáveis e transformando-os em uma espécie de divindades terrenas. Em Cursed, as coisas mudam: a ressignificação e a reapropriação da história por suas construções femininas parece seguir os passos da bucólica criação de Marion Zimmer Bradley, deixando claro que as mulheres são as peças principais de um jogo sem fim e sem vencedores.

Arquitetando uma mitologia própria cujas delineações ainda não foram exploradas por completo, Nimue é a peça-chave de uma comunidade feérica que se esconde nas sombras do avanço eclesiástico, cujos guerreiros (chamados de Paladinos Vermelhos) têm apenas uma missão: expurgar os hereges e garantir que os ensinamentos de seu deus imperem. Essa cruzada, que remonta aos primeiros séculos do novo milênio, é pincelada com investidas míticas que remontam ao imaginário popular – e aproveitam uma originalidade interessante para adicionar certas subtramas de grande importância contemporânea, como as questões de raça, gênero e orientação sexual. Enquanto os deslizes existem e espalham-se para todos os aspectos técnicos e artísticos (desde alguns forçados efeitos especiais até certos diálogos com pontas soltas), o saldo final é consideravelmente positivo e abre espaço para várias ideias futuras e explorações mais dramáticas de seus protagonistas e coadjuvantes.

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A reviravolta feminista da qual a série se vale carrega consigo um cuidadoso tratamento: Nimue é filha de uma poderosa sacerdotisa chamada Lenore (Catherine Walker), que escondeu certas verdades de sua história para protegê-la de forças externas. Quando os Paladinos atacam sua aldeia, exterminando um a um, Nimue parte em uma jornada solitária, deixando sua antiga vida para trás, para encontrar Merlin e entregar-lhe Excalibur – e, como uma obediente e fiel filha, ela faz disso seu principal objetivo na vida. No meio dessa trajetória, ela cruza caminho com um antigo assaltante e aspirante a cavaleiro Arthur (Devon Terrell), por quem se apaixona, Morgana (Shalom Brune-Franklin), uma freira devota cujo destino é muito mais grandiosos do que imagina, Gawain (Matt Stokoe), o Cavaleiro Verde e antigo conhecido de infância, e diversos outros. Cada um deles tem sua própria complexidade e um respaldo psicológico que os afasta de meros extremos de uma mesma moeda.

Em outras palavras, é notável o trabalho de campo que Miller e Wheeler, que também entram como showrunners, fazem para modificar certos aspectos até mesmo da obra primária. Por mais que concebam certos ideários fracos ou esquecíveis – não pela falta de empenho, mas sim por serem destinados a planos secundários demais para atuarem no panorama principal -, o mote de toda a série é reverberar um horizonte diferente dos que estamos acostumados. Temos a presença de um mimado e infantiloide Uther (Sebastian Armesto), mergulhando em um arco penoso e sendo destituído de sua presença régia; temos Lancelot, aqui mascarado como o Monge Choroso (Daniel Sharman), um feérico à mercê da vontade clérica que mata seus semelhantes; temos Guinevere (Bella Dayne) sendo transformada em uma poderosa guerreira bárbara – e até mesmo o próprio Merlin rende-se à bebedeira e aos caprichos mundanos ao perder sua magia e se sentir incompleto.

Aliado a uma estética poderosa que brinca com as emulações cinematográficas e busca uma identidade própria, grande parte das sequências envolvem o público para os episódios seguintes, enquanto algumas pontuais pecam em imitações baratas que não teriam qualquer lugar. Conforme comparações a outras incursões televisivas se mostram inevitáveis, Cursedalcança sucesso naquilo que se propõe a entregar, por vezes utilizando o escapismo encantatório para varrer os erros para debaixo do tapete. No final das contas, isso não importa: Langford e seus colegas fazem um trabalho sólido o suficiente para nos deixar querendo mais.

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Thiago Nollahttps://www.editoraviseu.com.br/a-pedra-negra-prod.html
Em contato com as artes em geral desde muito cedo, Thiago Nolla é jornalista, escritor e drag queen nas horas vagas. Trabalha com cultura pop desde 2015 e é uma enciclopédia ambulante sobre divas pop (principalmente sobre suas musas, Lady Gaga e Beyoncé). Ele também é apaixonado por vinho, literatura e jogar conversa fora.

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Cursed – A Lenda do Lago’ foi uma das mais recentes adições a essa saga infinita e, afastando-se do preciosismo masculinizado de tantas outras adaptações para os cinemas e para a televisão, a trama bebe do livro homônimo escrito por Thomas Wheeler e ilustrado pelo lendário Frank Miller. Produzida pela Netflix (que felizmente acerta em cheio com uma obra cujo trôpego começo não apaga as divertidas e chocantes incursões das quais se dispõe), a personagem central é a esquecida Nimue, primeira portadora da Excalibur conhecida pela alcunha de Senhora do Lago. Com seu nome sendo transmutado com o passar dos séculos, Nimue costuma ser retratada como a guardiã da Espada de Todos os Reis, ciente do perigo que ela representaria caso caísse nas mãos erradas. Entretanto, nessa nova epopeia, a protagonista, interpretada com afinco por Katherine Langford, é uma jovem garota que vê seu mundo se desmantelar bem à sua frente, cruzando caminhos com o perigoso artefato e com uma missão derradeira d entregá-la para Merlin, o Mago (Gustaf Skarsgård).

As novelas de cavalaria, produções escritas das quais as histórias arturianas provém, normalmente são contadas a partir das perspectivas de homens – cavaleiros templários ou feiticeiros poderosos sem quaisquer indícios de corrupção anímica que se unem para manter viva a mitologia cristã e combater aqueles que desejam espalhar o caos pelo mundo. Dessa forma, o maniqueísmo narrativo era o grande imperador de tais aventuras, colocando-os em patamares irretocáveis e inalcançáveis e transformando-os em uma espécie de divindades terrenas. Em Cursed, as coisas mudam: a ressignificação e a reapropriação da história por suas construções femininas parece seguir os passos da bucólica criação de Marion Zimmer Bradley, deixando claro que as mulheres são as peças principais de um jogo sem fim e sem vencedores.

Arquitetando uma mitologia própria cujas delineações ainda não foram exploradas por completo, Nimue é a peça-chave de uma comunidade feérica que se esconde nas sombras do avanço eclesiástico, cujos guerreiros (chamados de Paladinos Vermelhos) têm apenas uma missão: expurgar os hereges e garantir que os ensinamentos de seu deus imperem. Essa cruzada, que remonta aos primeiros séculos do novo milênio, é pincelada com investidas míticas que remontam ao imaginário popular – e aproveitam uma originalidade interessante para adicionar certas subtramas de grande importância contemporânea, como as questões de raça, gênero e orientação sexual. Enquanto os deslizes existem e espalham-se para todos os aspectos técnicos e artísticos (desde alguns forçados efeitos especiais até certos diálogos com pontas soltas), o saldo final é consideravelmente positivo e abre espaço para várias ideias futuras e explorações mais dramáticas de seus protagonistas e coadjuvantes.

A reviravolta feminista da qual a série se vale carrega consigo um cuidadoso tratamento: Nimue é filha de uma poderosa sacerdotisa chamada Lenore (Catherine Walker), que escondeu certas verdades de sua história para protegê-la de forças externas. Quando os Paladinos atacam sua aldeia, exterminando um a um, Nimue parte em uma jornada solitária, deixando sua antiga vida para trás, para encontrar Merlin e entregar-lhe Excalibur – e, como uma obediente e fiel filha, ela faz disso seu principal objetivo na vida. No meio dessa trajetória, ela cruza caminho com um antigo assaltante e aspirante a cavaleiro Arthur (Devon Terrell), por quem se apaixona, Morgana (Shalom Brune-Franklin), uma freira devota cujo destino é muito mais grandiosos do que imagina, Gawain (Matt Stokoe), o Cavaleiro Verde e antigo conhecido de infância, e diversos outros. Cada um deles tem sua própria complexidade e um respaldo psicológico que os afasta de meros extremos de uma mesma moeda.

Em outras palavras, é notável o trabalho de campo que Miller e Wheeler, que também entram como showrunners, fazem para modificar certos aspectos até mesmo da obra primária. Por mais que concebam certos ideários fracos ou esquecíveis – não pela falta de empenho, mas sim por serem destinados a planos secundários demais para atuarem no panorama principal -, o mote de toda a série é reverberar um horizonte diferente dos que estamos acostumados. Temos a presença de um mimado e infantiloide Uther (Sebastian Armesto), mergulhando em um arco penoso e sendo destituído de sua presença régia; temos Lancelot, aqui mascarado como o Monge Choroso (Daniel Sharman), um feérico à mercê da vontade clérica que mata seus semelhantes; temos Guinevere (Bella Dayne) sendo transformada em uma poderosa guerreira bárbara – e até mesmo o próprio Merlin rende-se à bebedeira e aos caprichos mundanos ao perder sua magia e se sentir incompleto.

Aliado a uma estética poderosa que brinca com as emulações cinematográficas e busca uma identidade própria, grande parte das sequências envolvem o público para os episódios seguintes, enquanto algumas pontuais pecam em imitações baratas que não teriam qualquer lugar. Conforme comparações a outras incursões televisivas se mostram inevitáveis, Cursedalcança sucesso naquilo que se propõe a entregar, por vezes utilizando o escapismo encantatório para varrer os erros para debaixo do tapete. No final das contas, isso não importa: Langford e seus colegas fazem um trabalho sólido o suficiente para nos deixar querendo mais.

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