O desconhecido assusta. O novo é capaz de traumatizar a mais leviana e ingênua das mentes, principalmente quando este mesmo novo está associado a assuntos tão perigosos e delicados como o sobrenatural – ou, como muitos gostam de utilizar, os tabus.
E é sobre exatamente isso que um dos dramas mais subestimados da BBC One, produzido por Ridley Scott, fala. A história de ‘Taboo’ gira em torno de um homem intitulado James Keziah Delaney, um ex-marinheiro considerado morto há mais de uma década que de repente volta para a cidade de Londres, Inglaterra, apenas para ser julgado por cada habitante de uma das maiores e mais poderosas metrópoles do início do século XIX. Em seus pouco mais de cinquenta minutos, o episódio piloto, intitulado “Shovels and Keys”, já nos fornece uma grande base do que nos aguarda nos próximos episódios, e cada uma de suas subtramas nos envolve de forma inefável.
O primeiro capítulo, dirigido por Krystoffer Nyholm, um veterano dentro da emissora supracitada, já começa um com plano sequência fabulosamente construído que apresenta o público a um navio desbotado e corroído pelo tempo do qual uma pequena parte, rumo ao píer mais próximo. Não podemos dizer exatamente quem é aquele personagem ou quais são seus objetivos, mas o modo como a cena é construída cria uma atmosfera embebida na própria dúvida: e assim que ele chega em terra firme, nossas perguntas e nosso interesse pelos acontecimentos decorrentes apenas aumentam. O personagem é o já mencionado James, encarnado por uma versão ao mesmo tempo fisicamente inexpressiva e psicologicamente desequilibrada de Tom Hardy.
Hardy é tão fluido quanto a câmera. Ele dança pelos cenários intrínsecos à ambientação londrina, pincelados com tons neutros de marrom, cinza e preto, seguido de perto por enquadramentos que sugerem um equilíbrio efêmero: sua chegada à cidade indica uma desordenação do status quo, evidenciado no segundo conjunto sequencial que discorre sobre o funeral de seu próprio pai. Na igreja, conhecemos outra dupla de personagens – a tímida e melodramática Zilpha Geary (Oona Chaplin) e seu marido valentão, Thorne (Jefferson Hall). Acontece que Zilpha é meia-irmã de James, e acreditou piamente em sua morte para poder se livrar de um peso moral inconsequente, tanto que a volta de seu parente não apenas mexe com suas estruturas frágeis, mas desperta dentro dela um sentimento de culpa que data de épocas passadas.
Não bastasse os problemas familiares, James também deve lidar com uma alegoria muito maior, uma representação material da Companhia das Índias Ocidentais, aqui no rosto sempre muito bem-vindo de Jonathan Pryce como o impiedoso Sir Stuart Strange. O pai de James, um dos grandes mistérios a ser explorado em Taboo, deixou para seu único filho homem uma porção de terra nos Estados Unidos, país em que à época da série – década de 1810 – estava em um profundo desencanto com o Reino Unido e suas políticas protecionistas. Ambas as nações estavam prestes a entrar numa guerra complexa, e a posse deste território forneceria à Coroa britânica uma passagem para a China e uma rota muito mais rápida para a conquista de commodities, além de lhes dar uma vantagem bélica portuária.
Além disso, durante o curso do primeiro episódio, descobrimos que James já esteve dentro de uma das delegações marítimas de Strange, quando ainda era adolescente. E é aqui que a primeira virada se fixa: o protagonista na verdade foi abandonado por seus líderes no território africano. E sua volta, além de representar um “milagre” impossível, desenterra ressentimentos profundos que oscilam desde temas racistas até conspirações sobrenaturais.
Ao que tudo indica, o cenário não é um dos melhores para o protagonista: mas, como toda boa narrativa que se preze, ele será ajudado por um antigo amigo, Brace (David Hayman), talvez um dos únicos personagens essencialmente verdadeiros e fiéis à sua origem. Em uma das sequências mais verborrágicas do episódio, ambos estão dentro de uma casa mal-iluminada, conversando sobre uma garrafa de uísque, quando de repente o assunto desdobra-se na vivência traumática e nos objetivos vingativos de James. Brace não pode fazer nada além de aceitar o destino que aguarda seu amo, mas ao mesmo tempo mostra-se agarrado aos valores que conheceu. Rumores sobre a volta do filho perdido se espalham pela cidade como água – e ainda não pode-se ter certeza do tom da série (se ela irá apelar mais para o drama histórico ou se sua principal referência virá de obras como ‘Penny Dreadful’).
A narrativa pode parecer saturada depois desta análise, mas o foco aqui não é a história em si. Assim como outras produções audiovisuais da época, como ‘The Crown’ e ‘Downton Abbey’, o foco reside sobre os personagens e sobre suas relações. Primeiramente, temos que saber que cada um dos protagonistas permanece quase o tempo todo envoltos por sombras, indicando que guardam consigo algum segredo e que suas ações não correspondem diretamente ao que acreditam. James, em toda sua construção sui generis, é o que chama mais atenção, por portar-se como alguém anacronicamente deslocado. A própria presença de Hardy traz à cena uma sobriedade taciturna e mórbida.
O ritmo um pouco lento é ofuscado pelas composições de cena: tudo beira o simples antagonismo. Em uma das primeiras sequências, James está atravessando uma ponte de mármore, montando um cavalo branco. Ambos estão centralizados, e a atemporalidade histórica entre em choque com o eminente progresso, evidenciado pela industrialização que mancha o horizonte londrino.
Outro ponto muito interessante da série é a trilha sonora. Composta por Max Richter, a música é predominantemente modal, desenrolando-se de forma angustiante, visceral e quase animalesca, entrando em sintonia com cada uma das cenas. Tudo ainda é muito cru para ser digerido e, conforme nossas relações com os personagens se intensificam, o tom irá se acertando – para o melhor ou para o pior.
‘Taboo’ nos apresenta uma perspectiva histórica bastante original, ainda que permeada por temas fantasiosos de outras construções do gênero. Mas garanto que a série é forte o suficiente para segurar o público e mantê-lo fiel até o capítulo de encerramento.