Na década de 1970, a conjuntura político-social dos Estados Unidos passava por uma grande mudança – e uma luta por direitos igualitários organizado pelo movimento feminista que clamava pela ratificação de uma emenda que diminuiria, ainda que a passos curtos, a disparidade de gênero de uma comunidade dividida entre o pensamento ideológico reacionário e o revolucionário. E, enquanto o cenário parecia pender totalmente a favor da militância liberal, uma figura um tanto quanto peculiar chamada Phyllis Schlafly mobilizou um grupo de mulheres conservadoras para se opor diretamente à aprovação da legislatura, alegando a destruição dos ideais do matrimônio e da família e da perda de privilégios já conquistados desde a primeira onda do feminismo ainda no século XIX.
É claro que, através de um poder de retórica inigualável – e sua familiaridade com termos técnicos devido à carreira política dela e do marido, que buscava um lugar mais considerável nas cadeiras do Sendo -, ela conseguiu disseminar um sentimento antifeminista através dos estados do Centro-Oeste e do Sul, almejando à dignidade submetida ao patriarcado para arrebatar principalmente donas de casa a um lado extremamente ultrapassado e hierárquico ao qual resolviam obedecer por vontade própria (e por uma condição de gênero normatizada desde sempre). E foi a partir desse histórico embate – que estende suas ramificações até hoje com força descomunal – que a FX comprou os direitos de exibição de ‘Mrs. America’, uma série que mescla drama, história e comédia de modo infalível, tornando-se uma das melhores e mais necessárias produções do ano.
Guiada por uma versão incrível de Walter Murphy para a 5ª Sinfonia de Beethoven, o show é protagonizado por Cate Blanchett no papel de Phyllis – e, novamente, nos assombra com sua versatilidade performática. Logo no primeiro episódio, a atriz abandona suas raízes australianas para encarnar com visceralidade o sotaque de Missouri e nos fazer apaixonar (e odiar, é claro) uma atuação bastante concisa. Phyllis, outrora apaixonada por questões bélicas e tentando recuperar as rédeas de sua presença política depois de uma derrocada nas últimas eleições, resolve pavimentar seu caminho de uma forma diferente: depois de ser constantemente interrompida por senadores e deputados homens, ela se posiciona contra o movimento ERA e atraí a atenção dos republicanos como uma possível porta-voz para as eleitoras “caseiras” que precisam expressar sua voz.
Enquanto Blanchett rouba todas as cenas em que aparece, ela não está sozinha; ao contrário, está acompanhada de um elenco estelar formado por Sarah Paulson como a ingênua e influenciável Alice, uma forte crítica ao movimento liberal feminista que se recusa a dizer o que pensa com medo de magoar as pessoas próximas; Uzo Aduba, que faz uma interpretação memorável de Shirley Chisholm, a primeira mulher negra a ser eleita para o Congresso dos Estados Unidos; Margot Martindale como a poderosa ativista Bella Abzug, que não poupa comentários quando se trata do que precisa ser reivindicado (isso sem falar de sua crença inabalável de que faria um trabalho melhor caso lhe dada a oportunidade); e, principalmente, a fantástica Rose Byrne, que abandona seus papéis anteriores encarnar Gloria Steinem, uma grandiosa figura pública que trilhou por conta própria sua jornada para Washington e faz de tudo para que as demandas do nicho que representa sejam acolhidas pela maioria masculina do cenário governamental.
A criadora Dahvi Waller busca ao máximo afastar-se das construções tele e cinebiográficas dos últimos anos ao imprimir uma perspectiva mais dinâmica e envolvente para fatos históricos e densos demais para serem absorvidos com clareza pelo público menos engajado. Dessa forma, mesmo que utilize um linguajar mais restrito em certas sequências – o que é de se esperar, considerando a mensagem principal da produção e o fato de que várias cenas se passam em escritórios, tribunais e passeatas -, Waller mergulha em diálogos fictícios e uma romantização bem-vinda dos fatos reais, contribuindo para que fiquemos vidrados nos episódios do começo ao fim. É claro que, em certos aspectos, a showrunner apenas arranha a superfície – talvez como forma de proporcionar uma presença considerável de cada membro do elenco de modo igualitário.
Apesar dos erros visíveis, a série não é, em nenhum momento, dialógica com amadorismos cênicos ou um panfletarismo excessivo. Pelo contrário, ela tem plena ciência do que conta e se vale bastante de seu elenco para estontear os espectadores – e, mais do que isso, é essa equipe on point e suas respectivas construções divergentes que nos conquistam desde os primeiros minutos, criando atribulações instigantes em cada beat (até nos mais políticos). E, caso isso não seja o bastante para atrair a atenção, é sempre válido prestar atenção no respaldo verossímil traduzido pela direção de arte, que arquiteta duas atmosferas distintas colidindo em um explosivo mundo.
De um lado, Washington e Nova York vêm à tona com a exuberância setentista da cultura hippie-disco e new wave, representado pela roupagem kitsch dos membros da militância feminista (inclusive pelo design apaixonante de Byrne); de outro, Missouri emerge como uma resposta estagnada no tempo, canalizada para as longas saias das donas de casas, a paleta de cores pastéis e algumas pinceladas de época que parecem destoar do que as personagens representam.
Unindo história a uma tragicomédia cautelosamente construída, ‘Mrs. America’ alcança o patamar de uma das melhores minisséries dos últimos anos por uma lista extensa de motivos – cuja narrativa enérgica, às vezes pendendo para uma verborragia aferrada, é sua principal arma de convencimento, vendendo exatamente o que promete (e, em certas partes, até mais do que compramos).