Os livros são poderosos. Desde o surgimento da literatura há centenas de anos, ficou bem claro que a escrita não é apenas um instrumento para recordar o que acontece em nossas vidas, ou um mero aparato para assinar documentos e contratos. Nas mãos certas, ela torna-se uma arma incontrolável, sendo capaz de nos levar para os mundos mais fantásticos sem ao menos termos que levantar da poltrona. Parece clichê dizer isso, mas esse sentimento é partilhado por todos em qualquer lugar do mundo: pergunte ao seu amigo ou ao seu familiar que sempre gostou de um bom livro. Ele com certeza irá te responder que nunca se sentiu sozinho, nunca se decepcionou nem mesmo com as páginas amareladas, e retornou de uma incrível viagem são e salvo, pronto para mergulhar em mais uma aventura.
Mas o que acontece quando esse mundo é mais perigoso e totalmente diferente do que pensávamos? É partindo dessa premissa que John Connolly ousa criar uma fábula epopeica e recheada de metalinguagens com uma obra que não teve o reconhecimento que merecia, intitulada ‘O Livro das Coisas Perdidas’. Aqui, o escritor irlandês busca em sua infância e adolescências os contos que moldaram sua personalidade e que abriram seus olhos para um mundo novo, além de provavelmente ter colocado bastante de sua própria vida dentro da jornada do protagonista David. Porém, este aqui não é um mero romance de ficção fantástica, indo muito além do que promete em uma simples sinopse e encantando todos que se arrisquem a abri-lo.
Logo no primeiro capítulo, Connolly mostra sua afeição para as narrativas clássicas infantis, começando com o infalível e bastante conhecido “era uma vez”. Entretanto, a ambientação não se ergue numa clareira no meio de uma floresta, ou então num imponente castelo, e sim na Inglaterra do final da década de 1930. David, o nosso jovem herói, é um garoto de onze anos que perdeu sua mãe para uma doença incurável e agora vive com o pai num imenso casarão, o qual se mantém ocupado com seus afazeres como contador conforme a segunda grande guerra se materializa em solo europeu. Para suprir suas necessidades, ele passa as tardes ocupando-se com obras literárias dos mais variados tipos, desde didáticos até épicos.
As coisas mudam drasticamente de cenário quando o menino percebe que seu pai seguiu em frente e parece ter esquecido da falecida mãe ao se tornar bem próximo de Rose, uma enfermeira que acabou ajudando David quando este teve uma espécie de ataque epiléptico ao começar a ouvir seus livros sussurrando. É claro que a imediata reação do protagonista é ódio e inconformismo, principalmente quando o pai e a futura madrasta anunciam que estão esperando um filho. Assim que o pequeno George chega, os sentimentos conflitantes de David alcançam um nível inenarrável e a casa vira palco de sequências de tirar o fôlego.
Entretanto, esse realismo excessivo logo dá lugar a algo muito mais mágico. Connolly arquiteta de forma impecável a transição do jovem herói do mundo em que vivia para o temido desconhecido, permitindo que o cruzamento do limiar entre as duas esferas o mergulhe em um ciclo de amadurecimento perscrutado dos mais mortais obstáculos. Após estranhos eventos ocorrerem em seu cotidiano, como os desmaios e a presença taciturna do Homem Torto, uma figura medonha que se esconde nas sombras e que parece espioná-lo a todo momento, ele decide compreender o que acontece e, durante um ataque inesperado dos alemães ao subúrbio londrino, ele é arremessado para dentro de uma árvore seca, apenas para chegar do outro lado em um cenário caótico, destruído e enevoado.
É aqui que a maior provação de David começa. Assim que chega a esse novo cosmos, cujo nome permanece uma incógnita o livro inteiro, ele se depara com o primeiro guardião, responsável por lhe explicar o que está acontecendo e colocá-lo no caminho de volta para casa, uma vez que o portal original se fechou. Seu nome, também desconhecido, é substituído pela simples profissão de Lenhador. Mas se há uma coisa que o autor nos ensina é não julgar um livro pela capa: habitante das florestas há mais tempo do que se recorda, o Lenhador conta para o menino sobre as criaturas híbridas chamadas Loups, nascidas da união profana entre uma mulher e um lobo. Multiplicando-se em um ritmo assustador, tais monstros desejam depor o rei daquele vasto território e iniciar seu governo pautado no medo e no desespero.
Apesar de mais contido, o romance de Connolly carrega consigo várias homenagens claras a mitologias clássicas, mas também se inclina para obras-primas da ficção. A fluida habilidade de criar distinções raciais e uma odisseia “contemporânea”, por assim dizer, mostra suas emulações competentes para ‘O Senhor dos Anéis’ – e isso não é tudo. Ao longo do caminho, que já traça diálogos bem explícitos com a atemporal ‘A Jornada do Herói’, de Joseph Campbell, David encontra certos personagens bastante lembrados por grande parte das pessoas, porém desconstruídos dos modos mais irônicos, dramáticos e persuasivos possível. Há uma cena, por exemplo, em que ele se depara com os sete anões, trabalhadores oprimidos pela presença da insuportável Branca de Neve, a qual permanece o dia inteiro de pernas para cima enquanto seus escravos lutam para se libertas. O Homem Torto, por sua vez, tem a personalidade de um malandro, um enganador à moda de Rumplestiltskin, o qual roubava crianças para se alimentar delas.
É bastante claro ver como o personagem principal representa os três estágios de evolução humana. Iniciando a obra como uma construção mimada, ingênua e impaciente, típica das crianças, ele logo desabrocha em uma pessoa muito mais compreensiva, forte e que não tem medo de enfrentar obstáculos para salvar aqueles que ama, ainda que caia nas enganações de mentes muito mais ardilosas. Sua adolescência chega ao fim quando ele perde todos ao seu redor e mesmo assim luta contra os perigos que querem destruí-lo – e com o desenrolar do terceiro ato, Connolly aproveita para traçar paralelos incríveis com o começo da narrativa e abre espaço para reviravoltas espetaculares, dignas de nota. A conclusão, também metalinguística, nos coloca em uma catártica espera pelo fim, no qual, juntamente ao herói, encontramos a tão aguardada paz.
‘O Livro das Coisas Perdidas’ pode, em teoria, ter sido jogado na seção infanto-juvenil, mas após lê-lo com bastante atenção, percebemos que as coisas são muito mais profundas do que pensávamos. Em um coming-of-age emocionante, o romance não apenas nos encanta, como também nos leva a pensar que o que os nossos olhos veem na verdade é uma ínfima parte do que realmente é.