A necessidade de amar ou não alguém.
Mesmo com poucos longas-metragens em sua carreira, Spike Jonze já pode ser considerado um dos cineastas americanos mais talentosos da última década. Isso porque, ao lado do também seminal roteirista, Charlie Kaufman, realizou filmes absolutamente fascinantes, no que se refere à narrativa e complexidade de texto. Primeiro com Quero ser John Malkovich (1999), no qual, através do voyeurismo, explorou a constante obsessão humana de querer ser e sentir o outro; depois com a obra-prima contemporânea, Adaptação (2002), que abordou, de várias formas, o maior medo de um escritor: o bloqueio mental de ideias.
Apesar disso, inesperadamente, Jonze resolveu se afastar das telonas, dedicando-se, por um longo tempo, apenas a trabalhos televisivos e particulares. Lançando, somente anos depois, a mágica adaptação, Onde Vivem os Monstros (2009). Um tocante conto infantil, que, pelo meio de metáforas, explanou os abundantes sentimentos que pairam na mente de uma criança. E, ainda que este não tenha tido, para a crítica, a mesma força dos anteriores, conseguiu ser, de um modo geral, muito bem quisto e elogiado.
No entanto, mesmo diante desses e vários outros títulos, em mídias como videoclipes, curtas-metragens e documentários, alguns ainda se perguntavam, e até duvidavam, do potencial artístico do diretor. Seria Kaufman o segredo de seus trabalhos ditos geniais? Estaria Spike Jonze esperando/dependendo de uma nova parceria para voltar à ascensão? Como é o caso de Michel Gondry, que desde Brilho Eterno De Uma Mente Sem Lembranças, não conseguiu fazer nada que se equiparasse à tamanha grandeza do filme estrelado por Jim Carrey e Kate Winslet.
Mas eis que, enfim, surge um projeto no qual Jonze produz, dirige e roteiriza; contendo vários dos elementos que, em outrora, o consagraram. Estrelado por Joaquin Phoenix (O Mestre), Ela traz a história do escritor de cartas, Theodore Twombly – que apesar de trabalhar numa empresa que depende de sentimentos e inspiração, já que precisa enviar correspondências subjetivas para desconhecidos, como fosse o remetente –, é um sujeito solitário, pois, aparentemente, perdeu o amor pela vida. E acabou se afundando, completamente, num universo paralelo, ou mundo virtual. Algo corriqueiro, em tempos atuais, em que, muitas vezes, trocamos a convivência pela comodidade irreal. Quase uma espécie de patologia mixoscopia. Que, não por acaso, é bem retratada quando o protagonista diz gostar de ver gente, mas sente necessidade de estar só.
Em meio a esse orbe singular, Theodore adquire um sistema operacional futurista, de hiper inteligência artificial, que possibilita, novamente, o ato de se relacionar. Algo como comprar um novo amigo. O que, imediatamente, nos leva ao principal ponto do conto: a relação entre o homem contemporâneo e a tecnologia sofisticada. Abordando a problemática social da questão, sua função e o nosso cotidiano urbano em crônico estágio de distanciamento. Ousando, mais ainda, por iniciar uma relação conflitante, carnal e amorosa, do protagonista com o programa informático. Criando, outra vez, translações de anseios humanos característicos, como a possessão, o medo e a necessidade de poder ajudar alguém.
Assim, engendrando uma narrativa fleuma, ocasionalmente intimista, Jonze nos entrega mais um belíssimo trabalho de direção, que funciona, organicamente, em seus três atos. Assim como cria um roteiro rico e ramificado, com diálogos avassaladores e trama curiosa. E que, além de impressionar pelo fabuloso trabalho de mise-en-scéne, com câmeras quase estáticas, repleta de ângulos naturalíssimos, é um longa esteticamente elegantíssimo e possui um curioso artifício de cores. Que, por assim, começa e é entregue no próprio pôster.
Reparem que o rosa e vermelho estampam, completamente, o cartaz. Estes tons nada mais são que o símbolo do humor e estado de espirito de Theodore Twombly. Notem que, logo de início, quando ele está na empresa, feliz por esquecer sua vida sem graça lá fora, o vermelho é explorado em alguns pontos do cenário. Ao mesmo tempo, Theodore está com um casaco rosa, mas veja que, por dentro, há uma camisa sem cor, tomada por um tom pastel. Representando sua angústia interna. E, no caminho de volta, a solidão começa a aparecer, quando sua jaqueta está desabotoada. Em casa ou na casa de amigos, antes de “conhecer” Samantha, ele veste sempre roupas descoloridas, tons leves e mornos. Mas ao iniciar seu relacionamento com o programa, torna, novamente, a se vestir com o rosa e vermelho. O momento marcante, que retrata esse jogo de cores, acontece quando ele está brigado com Samantha, e, em meio a uma fria floresta sem vida, a neve cai sobre seu casaco vermelho, simulando como anda seu relacionamento: completamente ofuscado.
Mesmo com a participação de atrizes fabulosas como Amy Adams (Trapaça), Olivia Wilde (Rush: No Limite da Emoção) e Rooney Mara (Terapia de Risco), Joaquin Phoenix é uma estrela que ofusca todas as outras – talvez Scarlett Johansson tenha tido, sim, destaque, por realizar uma interpretação vocal magistral. Mas, ainda sobre Phoenix, em O Mestre ele podia duelar com o já saudoso Philip Seymour Hoffman (Jogos Vorazes: Em Chamas), mas aqui, todo elenco empalidece diante de um desempenho sutil e competentíssimo. Tinha-se em Freddie Quell uma figura animalesca, incapaz de ser domesticada, em Theodore Twombly vemos um sujeito sensível, frágil e adorável. Distintos personagens que só ratificam o tamanho talento do ator.
A trilha sonora, que foi feita em meio à criação fílmica, desde sua gênese, é assinada pela banda canadense de indie rock, Arcade Fire, já parceira de Jonze em clipes e curtas. E que, em nenhum momento, se deixa levar pelo estilo e impetra quase a perfeição, por criar uma trilha que casa, completamente, com o clima proposto na fita. É perceptível o quanto Win Butler e o diretor estavam conectados para esse trabalho. Bem como a fotografia do sempre excelente Hoyte Van Hoytema (O Espião Que Sabia Demais), que acompanha o trabalho de cores e confere, através de lentes mais claras, um aspecto reflexivo e confortante.
Primoroso, mesmo, é constatar o poder que a obra emana. O quanto nos faz pensar, não apenas no que se refere ao conto, em sua forma literal, mas o conteúdo elucidado fora da tela. Pode até parecer preocupante pra alguns, mas fará com que outros se deparem com a mesma situação. Principalmente pelo desfecho, que mais parece a canção Só se for a dois, composta por Cazuza. Pois, como é de conhecimento popular, as possibilidades de felicidade são irrefutavelmente egoístas. Viver a liberdade e amar de verdade, só se for realmente a dois. E esse é o sentindo de absorção do conto, um ultimato do que é a vida e o amor. Provando, de uma vez por todas, o quão singular é o trabalho de Spike Jonze.