quarta-feira , 20 novembro , 2024

‘Entre Facas e Segredos’ é a franquia de ‘Agatha Christie’ para os NOVOS TEMPOS

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Independente de seu apreço por ele ou por seus filmes, é indiscutível que o cineasta norte-americano Rian Johnson, de 48 anos, é uma das vozes mais autorais do cinema popular de Hollywood. E isso numa época em que os filmes de entretenimento tem cada vez menos personalidade e o dedo de seu criador, parecendo mais terem sido criados em uma linha de montagem de uma fábrica. Vindo do lado alternativo, do cinemão indie, com produções pequenas como A Ponta de um Crime (2005) e Os Vigaristas (2008), Johnson começou a dar passos mais ambiciosos em 2012, com Looper: Assassinos do Futuro. Todos estes três filmes, é claro, têm sua assinatura, tendo sido igualmente escritos pelo diretor e saído unicamente de sua cachola.

E bastaram estes três projetos, cujo destaque do trio fica mesmo para Looper, para Johnson ser escalado para comandar nada menos do que a maior franquia da história do cinema: Star Wars! O realizador foi o arquiteto do Episódio VIII – Os Últimos Jedi, recebendo inclusive carta branca das poderosas Disney e LucasFilm para escrever o filme que quisesse. Mesmo que obviamente tenha havido eventual interferência por parte dos estúdios, é difícil imaginar que Johnson tenha sido muito podado, porque ele conseguiu fazer o que poucos talvez tivessem, ou seja, subverteu todas as expectativas e entregou o filme que queria, não o que os fãs esperavam. E isso deu uma confusão…



Autoral numa época de pouca autonomia. O diretor Rian Johnson é uma das mentes mais criativas e interessantes da Hollywood atual.

Em pouco tempo, Johnson era alvo de ódio dos fãs ardorosos da franquia, que chegaram a fazer um abaixo assinado para retirar o oitavo filme da cronologia. Por muito pouco Rian Johnson não se tornava persona non grata em Hollywood, afinal não é todo dia que um estúdio major tem uma tremenda batata quente dessas nas mãos. O cineasta se manteve fiel à sua veia artística, mas para isso mexeu num vespeiro.

Corta para outra cena. No mesmo ano em que Os Últimos Jedi chegava às telonas mundiais, em 2017, o diretor Shakespeareano Kenneth Branagh também iniciava um projeto ambicioso: adaptar os clássicos da literatura de sua conterrânea Agatha Christie para o cinema, costurando as obras num único universo com a presença do detetive Hercule Poirot, interpretado pelo próprio. No passado, o mais perto que essa empreitada chegou foi com produções que foram decaindo até serem lançadas direto na TV – todas protagonizadas por Peter Ustinov como Poirot. Ao contrário, os filmes de Branagh possuem a pompa de superproduções, com visual moderno e arrojado, repleto de astros da atualidade, bancadas por um dos maiores estúdios de Hollywood: a 20th Century Fox. O pontapé inicial escolhido pelo diretor foi Assassinato no Expresso do Oriente – o projeto escolhido no passado também, mesmo que de forma inconsciente, para iniciar os filmes de Ustinov (mesmo este contendo Albert Finney como Poirot).

Assassinato no Expresso do Oriente’ foi o pontapé inicial para o Agathaverso moderno, de Kenneth Branagh.

Em pouco tempo, Assassinato no Expresso do Oriente, de Kenneth Branagh, se tornava uma das produções mais aguardadas de seu respectivo ano de lançamento. Um projeto audacioso que, acima de tudo, visava introduzir um dos grandes nomes do suspense (o de Christie) para toda uma nova geração, não tão familiarizada com sua arte. E numa época em que Hollywood começava a priorizar o conceito de universo compartilhado como ordem da vez, onde todo grande estúdio queria sua parcela do sucesso da Marvel – vide o abortado “Monstroverso” da Universal (que deveria ter iniciado com A Múmia, de Tom Cruise) – o “Agathaverso” de Kenneth Branagh e a Fox chegava com ares refrescantes. Afinal, tinham o respaldo e a classe de uma das maiores autoras literárias de todos os tempos, moldado ao cinema pipoca entretenimento.

O resultado tímido, mas positivo, de Assassinato no Expresso do Oriente (2017) somado a críticas mornas apontavam para a falta de ousadia na proposta de Branagh – que é um realizador mais conservador. A ideia do cineasta foi mesmo dar apenas uma roupagem visual mais estilosa e chamativa e deixar o texto de Christie intacto. Sim, é verdade, tivemos uma mudança étnica com o personagem Arbuthnot (que ainda teve alterado seu posto de Coronel para Doutor) explicitando uma bem-vinda representatividade racial. Mas em sua narrativa e roteiro, Branagh se manteve na linha clássica.

Morte no Nilo’, o segundo passo do Agathaverso, pronto desde 2019, é uma das produções mais adiadas dos últimos anos.

Um pulo temporal e chegamos ao ano de 2019, onde dois fatos foram decisivos para a continuidade do Agathaverso. O primeiro foi a compra da Fox pela Disney, aprovada pelo governo americano. O que acontece é que o estúdio já havia escolhido a continuação direta para o Agathaverso, sendo esta opção por Morte no Nilo (o primeiro estrelado por Ustinov na década de 70). O filme estava pronto e aguardando a estreia desde 2019, mas devido à mencionada aquisição, todos os projetos da Fox foram momentaneamente engavetados – voltando a serem liberados sob o selo 20th Century Studios em 2020. Nesse embargo, um dos filmes que mais sofreu foi justamente o segundo capítulo do Agathaverso de Kenneth Branagh, Morte no Nilo – que ao que tudo indica verá a luz das salas de cinema agora em fevereiro de 2022, com lançamento marcado para este fim de semana no Brasil e o mundo.

O segundo fator evidente para a desestabilização do Agathaverso, mesmo que de certa forma despropositadamente, foi a estreia de Entre Facas e Segredos (Knives Out), no mesmo ano de 2019. E aqui voltamos lá para o início do texto, e para o diretor Rian Johnson. Algum engravatado de Hollywood seguiu vendo claramente o potencial de Johnson apesar do “tiro pela culatra” gerado por sua investida em Star Wars. Enaltecido pelos críticos como “um dos melhores filmes daquele ano” e “a volta da diversão aos cinemas”, Entre Facas e Segredos marcou a quinta obra autoral saída da mente de Rian Johnson. E dessa vez o cineasta resolvia brincar de Agatha Christie, com um suspense tipicamente moldado ao estilo da autora. Ou seja, uma grande mansão, o assassinato de um rico patriarca, e uma vasta gama de personagens, onde a maioria é membro de tal clã e todos são suspeitos. Ah sim, e um brilhante investigador de métodos excêntricos à frente de desvendar o mistério.

‘Entre Facas e Segredos’ é o melhor filme de Agatha Christie, que não é baseado em Agatha Christie.

Implementada a fórmula, podemos dizer que a “brincadeira” de Rian Johnson é o filme de Agatha Christie que precisávamos para os tempos modernos – superando até mesmo as clássicas obras da autora. Calma, antes das pedras, explico. A bibliografia de Agatha Christie é uma das mais ricas e constantes da literatura mundial, e graças a ela podemos ter todo tipo de suspense nas telas influenciados por seu estilo e modelo. Porém, como toda arte do passado, em especial livros e filmes, o corpo literário da autora é muito o produto de seu tempo. Hoje, valores e questões sociais são discutidas com mais afinco. Determinados tipos de texto possuem mais importância e relevância. Certas situações se encontram datadas.

Essa é a grande diferença crucial entre o Agathaverso de Kenneth Branagh e a “homenagem” prestada por Rian Johnson em Entre Facas e Segredos. Provando este argumento de aceitação está o fato de que o filme de Johnson foi indicado a 114 prêmios nas mais variadas premiações de cinema, incluindo um Oscar, e obteve 52 vitórias ao longo de sua trajetória; enquanto Assassinato no Expresso do Oriente se tornou um filme de consumo rápido e logo esquecido. Fazendo uma analogia culinária, Entre Facas e Segredos é uma degustação num restaurante refinado, enquanto Expresso do Oriente é um fastfood “bate entope”. Mas como isso pode ser? Se Branagh bebe diretamente na fonte da autora, enquanto Johnson apenas a homenageia. Sabe o ditado “a fortuna favorece os audazes”? Pois bem, ela se aplicar de forma certeira nesta comparação entre obras.

Kenneth Branagh, como o detetive Poirot, é a mente por trás do Agathaverso – mas falta ousadia a seus filmes.

Posso estar enganado, mas ao que tudo indica (pelos trailers e prévias), Morte no Nilo seguirá à risca o criado por Branagh em Expresso do Oriente. E não tem nada de errado com isso. Serve perfeitamente para encaixar com a direção mais tradicional do cineasta veterano. E serve também para apresentar Christie a toda uma nova geração, como dito. A maior dissonância nos filmes de Branagh se encontra no duelo entre forma e conteúdo. O visual chamativo, repleto de efeitos modernos e a edição acelerada e com muitos cortes não dialoga de forma muito precisa com o conteúdo antiquado e perdido no tempo. É como se Branagh e a Fox quisessem fazer um filme clássico e moderno ao mesmo tempo.

Por outro lado, a proposta de Rian Johnson é mais adequada ao seu argumento. Passado nos dias de hoje, e com a tecnologia e questões atuais sendo adereçadas constantemente (e tomando parte da trama), Johnson segue o caminho inverso de Branagh. Seu filme é moderno, mas emula os clássicos em teor e atmosfera. A estrutura é a de um suspense típico dos escritos por Christie, no entanto, inserido nesta época atual, abordando questões fervorosas muita debatidas na atualidade, como luta de classes, preconceito contra imigrantes e até a “fábrica” de ódio nas redes sociais. O que Johnson fez foi inserir Agatha Christie nos dias de hoje, confeccionando o que, possivelmente, a autora faria se fosse nossa contemporânea.

Entre Facas e Segredos 2’ é um dos filmes mais esperados de 2022, e o carro-chefe da Netflix para o ano.

Na contramão disso, Kenneth Branagh apenas refaz, palavra por palavra, situação por situação, o que a autora deixou como legado, estacionado numa época que há muito envelheceu em pensamentos e comportamentos. Mudando apenas as roupas e cenários mais vistosos, além do elenco de nomes quentes na atualidade. No fundo, os fãs sempre reclamam de refilmagens que não adicionam nada ao material original, e apenas recriam sem entregar qualquer novo elemento em troca. E não dá para fugir desta sensação ao presenciarmos os filmes do Agathaverso de Branagh, ainda mais se levarmos em conta que os dois filmes entregues pelo cineasta já haviam sido produzidos na década de 70  – tornando a atmosfera de remake ainda mais latente.

Não dá para prever a longevidade do Agathaverso de Branagh nos cinemas – tudo irá depender do resultado financeiro de Morte no Nilo. E sinceramente, espero que origine novas desventuras de Hercule Poirot, mesmo que seja nas telinhas do Star Plus – caso Morte no Nilo não atenda às expectativas do estúdio nas telonas. Seja como for, levando todos estes argumentos em conta, fica difícil não privilegiar a excitação para o vindouro Entre Facas e Segredos 2, agora nas mãos da Netflix, novamente escrito e dirigido por Rian Johnson, em detrimento ao bem mais previsível e domado Morte no Nilo. Afinal, o suspense precisa funcionar na surpresas de sua história, mas quando temos telegrafada para onde a trama irá caminhar devido a uma inserção de décadas na cultura popular, o fato pode se tornar um empecilho para o frescor de uma obra do gênero.

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Independente de seu apreço por ele ou por seus filmes, é indiscutível que o cineasta norte-americano Rian Johnson, de 48 anos, é uma das vozes mais autorais do cinema popular de Hollywood. E isso numa época em que os filmes de entretenimento tem cada vez menos personalidade e o dedo de seu criador, parecendo mais terem sido criados em uma linha de montagem de uma fábrica. Vindo do lado alternativo, do cinemão indie, com produções pequenas como A Ponta de um Crime (2005) e Os Vigaristas (2008), Johnson começou a dar passos mais ambiciosos em 2012, com Looper: Assassinos do Futuro. Todos estes três filmes, é claro, têm sua assinatura, tendo sido igualmente escritos pelo diretor e saído unicamente de sua cachola.

E bastaram estes três projetos, cujo destaque do trio fica mesmo para Looper, para Johnson ser escalado para comandar nada menos do que a maior franquia da história do cinema: Star Wars! O realizador foi o arquiteto do Episódio VIII – Os Últimos Jedi, recebendo inclusive carta branca das poderosas Disney e LucasFilm para escrever o filme que quisesse. Mesmo que obviamente tenha havido eventual interferência por parte dos estúdios, é difícil imaginar que Johnson tenha sido muito podado, porque ele conseguiu fazer o que poucos talvez tivessem, ou seja, subverteu todas as expectativas e entregou o filme que queria, não o que os fãs esperavam. E isso deu uma confusão…

Autoral numa época de pouca autonomia. O diretor Rian Johnson é uma das mentes mais criativas e interessantes da Hollywood atual.

Em pouco tempo, Johnson era alvo de ódio dos fãs ardorosos da franquia, que chegaram a fazer um abaixo assinado para retirar o oitavo filme da cronologia. Por muito pouco Rian Johnson não se tornava persona non grata em Hollywood, afinal não é todo dia que um estúdio major tem uma tremenda batata quente dessas nas mãos. O cineasta se manteve fiel à sua veia artística, mas para isso mexeu num vespeiro.

Corta para outra cena. No mesmo ano em que Os Últimos Jedi chegava às telonas mundiais, em 2017, o diretor Shakespeareano Kenneth Branagh também iniciava um projeto ambicioso: adaptar os clássicos da literatura de sua conterrânea Agatha Christie para o cinema, costurando as obras num único universo com a presença do detetive Hercule Poirot, interpretado pelo próprio. No passado, o mais perto que essa empreitada chegou foi com produções que foram decaindo até serem lançadas direto na TV – todas protagonizadas por Peter Ustinov como Poirot. Ao contrário, os filmes de Branagh possuem a pompa de superproduções, com visual moderno e arrojado, repleto de astros da atualidade, bancadas por um dos maiores estúdios de Hollywood: a 20th Century Fox. O pontapé inicial escolhido pelo diretor foi Assassinato no Expresso do Oriente – o projeto escolhido no passado também, mesmo que de forma inconsciente, para iniciar os filmes de Ustinov (mesmo este contendo Albert Finney como Poirot).

Assassinato no Expresso do Oriente’ foi o pontapé inicial para o Agathaverso moderno, de Kenneth Branagh.

Em pouco tempo, Assassinato no Expresso do Oriente, de Kenneth Branagh, se tornava uma das produções mais aguardadas de seu respectivo ano de lançamento. Um projeto audacioso que, acima de tudo, visava introduzir um dos grandes nomes do suspense (o de Christie) para toda uma nova geração, não tão familiarizada com sua arte. E numa época em que Hollywood começava a priorizar o conceito de universo compartilhado como ordem da vez, onde todo grande estúdio queria sua parcela do sucesso da Marvel – vide o abortado “Monstroverso” da Universal (que deveria ter iniciado com A Múmia, de Tom Cruise) – o “Agathaverso” de Kenneth Branagh e a Fox chegava com ares refrescantes. Afinal, tinham o respaldo e a classe de uma das maiores autoras literárias de todos os tempos, moldado ao cinema pipoca entretenimento.

O resultado tímido, mas positivo, de Assassinato no Expresso do Oriente (2017) somado a críticas mornas apontavam para a falta de ousadia na proposta de Branagh – que é um realizador mais conservador. A ideia do cineasta foi mesmo dar apenas uma roupagem visual mais estilosa e chamativa e deixar o texto de Christie intacto. Sim, é verdade, tivemos uma mudança étnica com o personagem Arbuthnot (que ainda teve alterado seu posto de Coronel para Doutor) explicitando uma bem-vinda representatividade racial. Mas em sua narrativa e roteiro, Branagh se manteve na linha clássica.

Morte no Nilo’, o segundo passo do Agathaverso, pronto desde 2019, é uma das produções mais adiadas dos últimos anos.

Um pulo temporal e chegamos ao ano de 2019, onde dois fatos foram decisivos para a continuidade do Agathaverso. O primeiro foi a compra da Fox pela Disney, aprovada pelo governo americano. O que acontece é que o estúdio já havia escolhido a continuação direta para o Agathaverso, sendo esta opção por Morte no Nilo (o primeiro estrelado por Ustinov na década de 70). O filme estava pronto e aguardando a estreia desde 2019, mas devido à mencionada aquisição, todos os projetos da Fox foram momentaneamente engavetados – voltando a serem liberados sob o selo 20th Century Studios em 2020. Nesse embargo, um dos filmes que mais sofreu foi justamente o segundo capítulo do Agathaverso de Kenneth Branagh, Morte no Nilo – que ao que tudo indica verá a luz das salas de cinema agora em fevereiro de 2022, com lançamento marcado para este fim de semana no Brasil e o mundo.

O segundo fator evidente para a desestabilização do Agathaverso, mesmo que de certa forma despropositadamente, foi a estreia de Entre Facas e Segredos (Knives Out), no mesmo ano de 2019. E aqui voltamos lá para o início do texto, e para o diretor Rian Johnson. Algum engravatado de Hollywood seguiu vendo claramente o potencial de Johnson apesar do “tiro pela culatra” gerado por sua investida em Star Wars. Enaltecido pelos críticos como “um dos melhores filmes daquele ano” e “a volta da diversão aos cinemas”, Entre Facas e Segredos marcou a quinta obra autoral saída da mente de Rian Johnson. E dessa vez o cineasta resolvia brincar de Agatha Christie, com um suspense tipicamente moldado ao estilo da autora. Ou seja, uma grande mansão, o assassinato de um rico patriarca, e uma vasta gama de personagens, onde a maioria é membro de tal clã e todos são suspeitos. Ah sim, e um brilhante investigador de métodos excêntricos à frente de desvendar o mistério.

‘Entre Facas e Segredos’ é o melhor filme de Agatha Christie, que não é baseado em Agatha Christie.

Implementada a fórmula, podemos dizer que a “brincadeira” de Rian Johnson é o filme de Agatha Christie que precisávamos para os tempos modernos – superando até mesmo as clássicas obras da autora. Calma, antes das pedras, explico. A bibliografia de Agatha Christie é uma das mais ricas e constantes da literatura mundial, e graças a ela podemos ter todo tipo de suspense nas telas influenciados por seu estilo e modelo. Porém, como toda arte do passado, em especial livros e filmes, o corpo literário da autora é muito o produto de seu tempo. Hoje, valores e questões sociais são discutidas com mais afinco. Determinados tipos de texto possuem mais importância e relevância. Certas situações se encontram datadas.

Essa é a grande diferença crucial entre o Agathaverso de Kenneth Branagh e a “homenagem” prestada por Rian Johnson em Entre Facas e Segredos. Provando este argumento de aceitação está o fato de que o filme de Johnson foi indicado a 114 prêmios nas mais variadas premiações de cinema, incluindo um Oscar, e obteve 52 vitórias ao longo de sua trajetória; enquanto Assassinato no Expresso do Oriente se tornou um filme de consumo rápido e logo esquecido. Fazendo uma analogia culinária, Entre Facas e Segredos é uma degustação num restaurante refinado, enquanto Expresso do Oriente é um fastfood “bate entope”. Mas como isso pode ser? Se Branagh bebe diretamente na fonte da autora, enquanto Johnson apenas a homenageia. Sabe o ditado “a fortuna favorece os audazes”? Pois bem, ela se aplicar de forma certeira nesta comparação entre obras.

Kenneth Branagh, como o detetive Poirot, é a mente por trás do Agathaverso – mas falta ousadia a seus filmes.

Posso estar enganado, mas ao que tudo indica (pelos trailers e prévias), Morte no Nilo seguirá à risca o criado por Branagh em Expresso do Oriente. E não tem nada de errado com isso. Serve perfeitamente para encaixar com a direção mais tradicional do cineasta veterano. E serve também para apresentar Christie a toda uma nova geração, como dito. A maior dissonância nos filmes de Branagh se encontra no duelo entre forma e conteúdo. O visual chamativo, repleto de efeitos modernos e a edição acelerada e com muitos cortes não dialoga de forma muito precisa com o conteúdo antiquado e perdido no tempo. É como se Branagh e a Fox quisessem fazer um filme clássico e moderno ao mesmo tempo.

Por outro lado, a proposta de Rian Johnson é mais adequada ao seu argumento. Passado nos dias de hoje, e com a tecnologia e questões atuais sendo adereçadas constantemente (e tomando parte da trama), Johnson segue o caminho inverso de Branagh. Seu filme é moderno, mas emula os clássicos em teor e atmosfera. A estrutura é a de um suspense típico dos escritos por Christie, no entanto, inserido nesta época atual, abordando questões fervorosas muita debatidas na atualidade, como luta de classes, preconceito contra imigrantes e até a “fábrica” de ódio nas redes sociais. O que Johnson fez foi inserir Agatha Christie nos dias de hoje, confeccionando o que, possivelmente, a autora faria se fosse nossa contemporânea.

Entre Facas e Segredos 2’ é um dos filmes mais esperados de 2022, e o carro-chefe da Netflix para o ano.

Na contramão disso, Kenneth Branagh apenas refaz, palavra por palavra, situação por situação, o que a autora deixou como legado, estacionado numa época que há muito envelheceu em pensamentos e comportamentos. Mudando apenas as roupas e cenários mais vistosos, além do elenco de nomes quentes na atualidade. No fundo, os fãs sempre reclamam de refilmagens que não adicionam nada ao material original, e apenas recriam sem entregar qualquer novo elemento em troca. E não dá para fugir desta sensação ao presenciarmos os filmes do Agathaverso de Branagh, ainda mais se levarmos em conta que os dois filmes entregues pelo cineasta já haviam sido produzidos na década de 70  – tornando a atmosfera de remake ainda mais latente.

Não dá para prever a longevidade do Agathaverso de Branagh nos cinemas – tudo irá depender do resultado financeiro de Morte no Nilo. E sinceramente, espero que origine novas desventuras de Hercule Poirot, mesmo que seja nas telinhas do Star Plus – caso Morte no Nilo não atenda às expectativas do estúdio nas telonas. Seja como for, levando todos estes argumentos em conta, fica difícil não privilegiar a excitação para o vindouro Entre Facas e Segredos 2, agora nas mãos da Netflix, novamente escrito e dirigido por Rian Johnson, em detrimento ao bem mais previsível e domado Morte no Nilo. Afinal, o suspense precisa funcionar na surpresas de sua história, mas quando temos telegrafada para onde a trama irá caminhar devido a uma inserção de décadas na cultura popular, o fato pode se tornar um empecilho para o frescor de uma obra do gênero.

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