A Inebriante Sensação das Artes
Acima de qualquer outra coisa, o novo filme de Quentin Tarantino é sobre o ano de 1969. Sobre o fim da inocência do movimento hippie. O fim de um sonho. E por se tratar de um realizador cinéfilo, é claro que tudo viria encaixado numa moldura de pura ode à sétima arte.
Os filmes de Tarantino são pura homenagem ao cinema, mesmo quando não falam sobre cinema. Cada frame de suas produções exalam amor à forma, à narrativa, aos diálogos, aos roteiros, aos objetos de cena, aos cenários, às canções. E quando um profissional apaixonado e dedicado como ele surge em cena, gostando ou não de seu estilo, é preciso que apontemos e exaltemos.
É verdade que o cinema de Tarantino se tornou bem mais farsesco – digamos, desde Kill Bill (2003) -, em relação à crueza e realismo de Pulp Fiction (1994), por exemplo. Existe aí uma transição, mesmo que muitos não percebam e sigam enaltecendo seu reconhecível estilo (que diz mais respeito ao roteiro na verdade). O fato é curioso já que foi o “realismo de como as pessoas falam de verdade” de Pulp Fiction e Cães de Aluguel (1992) que levou o cineasta a ganhar notoriedade e fazer escola. Kill Bill, Bastardos Inglórios, Django Livre, Os Oito Odiados e agora Era uma Vez… (além de À Prova de Morte, é claro), adquiriram, por vários fatores, uma atmosfera mais teatral, espetaculosa e surreal. Mas não menos impressionante.
Chegando ao seu tão anunciado nono filme (contando os Kill Bill como um filme só), Tarantino foca sua atenção numa era específica perdida no tempo, a qual a maioria talvez não seja capaz de compreender. E não se trata apenas de uma época, mas de um lugar. Hollywood – a capital do cinema e do entretenimento. As mudanças sociais também mexiam com o cinema, e a onda revolucionária do cinema “verdade”, mais real, crível e menos cenográfico, chegava com tudo impulsionado por produções europeias, prontos a adentrar com os dois pés na porta da cidade dos sonhos.
No meio desta transição, gente como o fictício Rick Dalton (Leonardo DiCaprio) ia perdendo seu status. Astro da TV em decadência, dono de seu próprio show, agora o sujeito precisa se contentar com participações especiais no programa dos outros, fazendo papeis de vilões, ou embarcar para a Itália e protagonizar faroestes espaguete – como fez o lendário Clint Eastwood. Os altos e baixos de sua carreira afetam diretamente seu parceiro profissional, seu dublê pessoal Cliff Booth (Brad Pitt), que devido à escassez de trabalhos foi relegado a faz tudo de luxo do ator.
Tarantino também enfatiza a dança das cadeiras que é este mundo de artistas, aqui provida pelas mudanças dos então ‘novos tempos’. Enquanto Dalton luta para manter a cabeça fora d’água e não se afogar, personalidades como Sharon Tate (Margot Robbie) e Roman Polanski (Rafal Zawierucha) surfam sua onda extrema de popularidade. É claro que se tratando de celebridades reais, já que o filme mistura ficção com fatos, o assunto fica mais delicado e Tarantino patina em gelo fino. Uma controvérsia em relação ao retrato do astro dos filmes marciais Bruce Lee, no filme vivido por Mike Moh, já estourou. Mas no que diz respeito a Tate, tudo era ainda mais sensível – afinal, a atriz foi assassinada grávida, aos 26 anos, justamente em tal ano. Tarantino a homenageia com sensibilidade e guarda a cena mais bela e poética do longa para ela. Mesmo sem muito o que dizer ou fazer na trama, Robbie consegue ser o espírito da obra: um longo entardecer radiante na cidade dos anjos.
“Um belo quadro, com bolor nos cantos. E esse mofo vai subindo e crescendo a ponto de consumir toda a linda imagem”. Foi assim que Tarantino descreveu a família Manson, andarilhos que doutrinados por seu guru Charles Manson (Damon Herriman) deturparam a filosofia hippie do “drogas, paz e amor” com “drogas, violência e assassinatos”. O culto serviu para mostrar o quão errado o movimento poderia dar, e deu. Tarantino frisa isso e faz questão de, mais uma vez, distribuir sua própria justiça particular – assim como em Bastardos Inglórios, Django Livre e Os Oito Odiados -, no único lugar aonde verdadeiramente pode: na magia de seus filmes.
Era uma vez em… Hollywood é uma das melhores produções cinematográficas de 2019. É cinema em toda a sua glória. Cinema de verdade. Longe do que a Hollywood atual se tornou – um rio de recicladas marcas registradas. O filme traz de volta a era dos astros e confia apenas no peso do nome dos envolvidos, e numa história original. Nada de super-heróis ou desenhos animados de “carne e osso”, e isso é refrescante. Ainda arriscaria dizer que Era uma Vez já é promessa para a próxima temporada de prêmios, em categorias como direção de arte, fotografia, atuação para DiCaprio e direção.
Tarantino é a velha Hollywood trazida de volta à tona, a celebração extrema de um cinema entretenimento criativo, pensante, questionador e sem ficar renegado a apreciadores intelectuais em seus clubinhos. O diretor prova que boas obras podem ser mainstream sim, e é um dos grandes (ou o maior) nomes atrás das câmeras a escancarar os moldes que separam os filmes populares dos filmes cult. Era uma vez em… Hollywood é uma obra sobre e apaixonada por cinema, assim como seu comandante. E ambos deixam transparecer esse amor a cada novo fôlego.