O final dos anos 2000 e começo dos anos 2010 foi marcado por uma ascensão considerável de narrativas distópicas e pós-apocalípticas jovem-adultas, em que o mundo era remodelado através de uma visão pessimista e assustadoramente reflexiva em relação à nossa realidade. Podemos citar, por exemplo, a popularização de ‘Maze Runner’ ou ‘Divergente’ como sagas literárias que conquistaram o público e ajudaram a exponenciar esse subgênero – mas, sem sombra de dúvida, é ‘Jogos Vorazes’ quem detém a maior legião de fãs e que permanece como um estandarte político-social para a geração que cresceu com os livros.
Lançado em 2008 e chegando ao Brasil mais de um ano depois, o primeiro volume da série assinada por Suzanne Collins se consagrou como uma ótima obra que, em pouco tempo, ganhou adaptação para as telonas. A trama, ambientada no futuro, nos leva para o fictício país intitulado Panem (outrora conhecido como América do Norte), que ainda lida com as consequências de uma devastadora guerra civil que matou milhões de pessoas. Após o fim das sangrentas batalhas, o território ficou dividido entre a Capital e os Distritos, cuja tirânica dinâmica colocava estes como vassalos àquela e obrigados a escolher dois tributos, um de cada sexo, para participarem dos Jogos Vorazes – uma competição em que os jovens deveriam se enfrentar e se matar até restar apenas um -, como forma de reafirmarem sua subserviência e se expurgarem dos “pecados” que cometeram.
Dentro desse cosmos, acompanhamos Katniss Everdeen (eternizada por Jennifer Lawrence nos filmes), uma jovem do Distrito 12, o mais flagelado pela guerra e o mais empobrecido de todos, que se voluntaria como tributo dos Jogos após a irmã, Primrose (Willow Shields), ser sorteada como uma das participantes. Ao lado de Peeta Mellark (Josh Hutcherson), um antigo conhecido que também é selecionado como tributo, ela embarca em uma jornada derradeira em que nem tudo é o que parece ser – e ela pode ser um dos símbolos de uma transformação revolucionária que colocará o poder da Capital e de seu presidente, Coriolanus Snow (Donald Sutherland), em xeque.
Enquanto o romance original teve recepção sólida por parte dos especialistas, o filme nos chamou a atenção pela fidelidade à história e por conseguir traduzir de forma competente um universo que se tornaria um grande sucesso de crítica e de bilheteria – ora, não é surpresa que caminhamos para a releitura de ‘A Cantiga dos Pássaros e das Serpentes’, que se passa décadas antes dos eventos protagonizados por Katniss. E, ao longo de quase duas horas e meia, o diretor Gary Ross captura com exímia a essência dos escritos de Collins e nos convida a uma intrigante e dilacerante aventura que nos desperta discussões importantes – fossem à época do lançamento, fossem agora.
São inúmeros os elementos que roubam a atenção – a começar pela sólida direção de Ross, que se une à autora para ficar responsável pelo roteiro. É notável como o realizador tem um apreço pela história e a conhece a fundo, reunindo-se com um grupo talentoso para nos vender o que se propõe. E claro que isso não seria possível sem o talento inato de Lawrence como a personagem titular, dominando cada uma das cenas e conquistando inúmeras indicações e prêmios por sua interpretação – afinal, ela mergulha na construção de Katniss sem deixar de lado certas incursões que oferecem mais profundidade a ela. E, acompanhando-a de perto, temos interpretações incríveis de Woody Harrelson como Haymitch Abernathy, mentor de Katniss e Peeta; Elizabeth Banks como Effie Trinket, escolta dos dois tributos que, pouco a pouco, se transforma em uma amiga importante (ainda mais tendo informações muito importantes de dentro da estruturas da Capital); Sutherland em uma de suas atuações mais memoráveis e vilanescas como o Presidente Snow; Hutcherson em uma empática e comovente performance como Peeta; Stanley Tucci e Lenny Kravitz como os coadjuvantes Caesar Flickerman, apresentador dos jogos, e Cinna, estilista que fica responsável por causar um impacto significativo na relação entre os patrocinadores e Katniss; e vários outros.
Mesmo com problemas óbvios de ritmo e de estruturação, os pontos positivos têm mais força. Para além das já mencionadas atuações, a composição sonora é on point e inclusive conta com uma belíssima faixa assinada por Taylor Swift e The Civil Wars, “Safe & Sound”; a composição cênica e fotográfica aposta fichas em uma certa construção documentária que fornece mais realismo ao universo criado – aliadas a uma direção de arte que oscila entre as calamidades da guerra para os Distritos e a superficialidade ególatra e hedonista da Capital; o roteiro, apesar de se valer de fórmulas, emerge como um ponto imprescindível para uma história de origem que é explorada em todo seu potencial.
‘Jogos Vorazes’ marcou uma geração inteira e, anos depois do lançamento do livro e do longa, continua como um ótimo início de uma ótima franquia que merece ser revisitada pelas reflexões promovidas e por um frescor audiovisual e literário que influenciaria inúmeras produções posteriores.