domingo , 22 dezembro , 2024

Especial Jordan Peele | ‘Não! Não Olhe!’, a sociedade do espetáculo e a exploração compulsória

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No último dia 25 de agosto, o aguardado suspense ‘Não! Não Olhe!’, terceiro longa-metragem comandado por Jordan Peele, chegou aos cinemas nacionais para encantar e arrepiar os espectadores.

Em sua mais nova investida depois dos aclamados Corra!’ e Nós, Peele resolveu retomar a parceria com Daniel Kaluuya e reunir-se pela primeira vez com nomes como Steven Yeun e Keke Palmer para uma aventura ambientada na paisagem quase desértica do sul dos Estados Unidos em que dois irmãos envoltos pelo luto e pelo prospecto de perderem o negócio da família se veem engolfados na misteriosa aparição de uma espécie de extraterrestre que se esconde nos céus. E, apesar da criatura não aparentar ser perigosa, as coisas logo se transformam numa batalha pela sobrevivência quando o OVNI resolve atacá-los sem qualquer motivo – e revela ser um monstro de fome insaciável.



Levando em consideração que este é um filme de Peele, a narrativa não é apenas uma celebração do sci-fi existencialista que nos conquista desde sua popularização no final dos anos 1970 e começo dos anos 1980. E, seguindo os passos de seus títulos anteriores, é necessário mergulhar mais fundo que o normal para descobrir as sutilezas críticas e sociais que se escondem num panorama bastante simples, por assim dizer. E, da mesma forma, é preciso que juntemos as peças de um quebra-cabeça bizarro que não apenas envolve o alienígena em questão, mas cavalos, um macaco assassino e um legado que parece perdido em meio à problemática do capitalismo predatório.

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Assim como Nós, o longa se inicia com uma premonitória citação da Bíblia, mais precisamente de Naum 3:6, cujo versículo diz: “eu mesmo lançarei sobre ti imundícias, te tratarei com total ignomínia; e farei de ti um espetáculo, um exemplo para todos”. A frase em questão premedita um dos motes principais da narrativa que, se não ficou muito claro com o material promocional, de fato ganha uma camada explícita depois que o enredo se fecha. O tema em questão pode ser caracterizado como “a sociedade do espetáculo” ou “o espetáculo como fetiche” – um objeto já estudado por diversos filósofos e pensadores.

Se viajarmos no tempo e voltarmos para a Roma Antiga, é possível traçar um paralelo entre a espetacularização contemporânea e a política do Pão e Circo, amplamente difundida pelos autocratas da época – cujo objetivo principal era o apaziguamento da população através da promoção de banquetes, festas e eventos (como a luta de gladiadores) em uma resposta momentânea e que mascarava os reais problemas enfrentados. Hoje, é possível ver essa mesma política infundida com as múltiplas definições de espetáculo que permeiam tais estudos e que se convergem numa passividade mandatória frente ao tempo e ao que realmente significa estar vivo. Segundo Guy Debord, por exemplo, discorre sobre o fato do espetáculo ser uma “inversão concreta da vida” e o “movimento autônomo do não-vivo”, que, ao mesmo tempo, “parte da sociedade, [é] a própria sociedade e seu instrumento de unificação”.

Cada personagem, por mais diferente que seja sua backstory, comunga da definição acima apresentada e se torna vítima do fetiche pela espetacularização e da forma como essa imposição se transforma em uma alienação compulsória daquilo que realmente importa. Não é à toa, pois, que OJ (Kaluuya) perceba tão fácil como enfrentar o alienígena (apelidado de Jean Jacket) – basta não olhá-lo e não se tornar alvo dos problemas que o espetáculo e a aceitação de uma exibição perigosa podem causar. OJ talvez funcione como símbolo de uma luta contra o espetáculo, na medida em que prefere se afastar do conceito da “realidade falsa” imortalizada por essa relação social e buscar um significado mais concreto do significado da vida.

Enquanto Emerald (Palmer), também envolvida pelas promessas vazias da espetacularização, luta para manter o negócio da família – cuja associação à história do cinema faz referências à temática analisada -, ela vai se desvencilhando aos poucos do que parece lhe causar um mal inexplicável e uma sensação crescente de fuga. Afinal, nos primeiros atos, vemos que Em é uma mulher com plena certeza do que quer para seu futuro e, por essa razão, não pode se limitar à realidade do pai e do irmão – ainda mais considerando que seus planos vão muito além da criação de cavalos e do contentamento com o bucólico. Eventualmente (e dentro de uma perspectiva um tanto quanto pessimista), suas investidas mais promissoras a levam de volta para o início, num vicioso ciclo de negação e frustração que a prende no mais remoto passado.

Algo similar acontece a Angel Torres (Brandon Perea) e a Antlers Host (Michael Wincott), cada qual com sua jornada internalizada no espetáculo e ambos nutrindo de similaridades gritantes. Angel, que trabalha em uma das múltiplas franquias da extinta Fry’s Electronics, resolve se apropriar do direito de “cuidar” das câmeras que instalou na fazenda de OJ e de Em e, quando o extraterrestre começa a dar as caras, imediatamente entre em seu carro e corre para lá para observar de perto; ora, ele até mesmo pede para que Em tire um louva-a-deus que está bloqueando uma das lentes e impedindo sua experiência completa. Antlers, por sua vez, é a materialização da espetacularização, visto que trabalha no cenário audiovisual e sabe os meandros para capturar imagens do OVNI e divulgar sua presença para o mundo.

Há um outro tema que toma forma no decorrer do filme, associando-se à sociedade do espetáculo e ao personagem vivido por Steven Yeun, Jupe: o da exploração. Quando mais novo, Jupe participou de uma ambiciosa sitcom intitulada ‘Gordy’s Home’ e que trazia como protagonista um macaco. Entretanto, como vemos em algumas sequências, a suspensão quase imediata da série ocorreu depois de um trágico incidente em que um balão que estourou culminou num vórtice de ira de Gordy e no subsequente assassinato de dois membros do elenco. Essa raiva descontrolada é uma espécie de resposta ao subjugo sofrido pelo animal, como resposta à constante exploração que sofria, encarcerado em uma situação de servidão obrigatória. E o evento, que ficou marcado no imaginário popular, tornou-se uma lenda urbana e integrou o que se enxerga como passividade mnemônica da espetacularização.

Essa memória é inclusive abraçada por Jupe, agora mais velho e dono de um parque de diversão: em seu escritório, é possível ver um token, um memento do que viveu quando mais jovem e um símbolo do que ele enfrentou no passado (talvez tendo se curado, talvez alimentando um trauma que não tem para onde escapar). Tudo indica que Jupe não aprendeu com os erros de outrem, utilizando a presença do alienígena como atração principal de seu parque e colhendo os frutos da exploração desmedida e da defesa do espetáculo como fonte de renda – ou seja, ele e o público de seu show são brutalmente mortos.

Debord caracteriza o movimento essencial do espetáculo como a ingestão de “tudo o que existe na atividade humana em estado fluido para depois vomitá-lo em estado coagulado, para que as coisas assumam seu valor exclusivamente pela formulação em negativo do valor vivido” – e tal máxima é adotada por Peele em sua própria definição que não é redundante, mas beira a literalidade: o OVNI, que é construído como antagonista, suga toda a vida que encontra pela frente e que ousa olhá-lo como se fosse mais um objeto, nutrindo-se do que precisa para depois regurgitar o que não tem mais valor (o estado coagulado analisado pelo autor).

Lembrando que ‘Não! Não Olhe!’ continua em exibição nos cinemas nacionais.

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Thiago Nollahttps://www.editoraviseu.com.br/a-pedra-negra-prod.html
Em contato com as artes em geral desde muito cedo, Thiago Nolla é jornalista, escritor e drag queen nas horas vagas. Trabalha com cultura pop desde 2015 e é uma enciclopédia ambulante sobre divas pop (principalmente sobre suas musas, Lady Gaga e Beyoncé). Ele também é apaixonado por vinho, literatura e jogar conversa fora.

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No último dia 25 de agosto, o aguardado suspense ‘Não! Não Olhe!’, terceiro longa-metragem comandado por Jordan Peele, chegou aos cinemas nacionais para encantar e arrepiar os espectadores.

Em sua mais nova investida depois dos aclamados Corra!’ e Nós, Peele resolveu retomar a parceria com Daniel Kaluuya e reunir-se pela primeira vez com nomes como Steven Yeun e Keke Palmer para uma aventura ambientada na paisagem quase desértica do sul dos Estados Unidos em que dois irmãos envoltos pelo luto e pelo prospecto de perderem o negócio da família se veem engolfados na misteriosa aparição de uma espécie de extraterrestre que se esconde nos céus. E, apesar da criatura não aparentar ser perigosa, as coisas logo se transformam numa batalha pela sobrevivência quando o OVNI resolve atacá-los sem qualquer motivo – e revela ser um monstro de fome insaciável.

Levando em consideração que este é um filme de Peele, a narrativa não é apenas uma celebração do sci-fi existencialista que nos conquista desde sua popularização no final dos anos 1970 e começo dos anos 1980. E, seguindo os passos de seus títulos anteriores, é necessário mergulhar mais fundo que o normal para descobrir as sutilezas críticas e sociais que se escondem num panorama bastante simples, por assim dizer. E, da mesma forma, é preciso que juntemos as peças de um quebra-cabeça bizarro que não apenas envolve o alienígena em questão, mas cavalos, um macaco assassino e um legado que parece perdido em meio à problemática do capitalismo predatório.

Assim como Nós, o longa se inicia com uma premonitória citação da Bíblia, mais precisamente de Naum 3:6, cujo versículo diz: “eu mesmo lançarei sobre ti imundícias, te tratarei com total ignomínia; e farei de ti um espetáculo, um exemplo para todos”. A frase em questão premedita um dos motes principais da narrativa que, se não ficou muito claro com o material promocional, de fato ganha uma camada explícita depois que o enredo se fecha. O tema em questão pode ser caracterizado como “a sociedade do espetáculo” ou “o espetáculo como fetiche” – um objeto já estudado por diversos filósofos e pensadores.

Se viajarmos no tempo e voltarmos para a Roma Antiga, é possível traçar um paralelo entre a espetacularização contemporânea e a política do Pão e Circo, amplamente difundida pelos autocratas da época – cujo objetivo principal era o apaziguamento da população através da promoção de banquetes, festas e eventos (como a luta de gladiadores) em uma resposta momentânea e que mascarava os reais problemas enfrentados. Hoje, é possível ver essa mesma política infundida com as múltiplas definições de espetáculo que permeiam tais estudos e que se convergem numa passividade mandatória frente ao tempo e ao que realmente significa estar vivo. Segundo Guy Debord, por exemplo, discorre sobre o fato do espetáculo ser uma “inversão concreta da vida” e o “movimento autônomo do não-vivo”, que, ao mesmo tempo, “parte da sociedade, [é] a própria sociedade e seu instrumento de unificação”.

Cada personagem, por mais diferente que seja sua backstory, comunga da definição acima apresentada e se torna vítima do fetiche pela espetacularização e da forma como essa imposição se transforma em uma alienação compulsória daquilo que realmente importa. Não é à toa, pois, que OJ (Kaluuya) perceba tão fácil como enfrentar o alienígena (apelidado de Jean Jacket) – basta não olhá-lo e não se tornar alvo dos problemas que o espetáculo e a aceitação de uma exibição perigosa podem causar. OJ talvez funcione como símbolo de uma luta contra o espetáculo, na medida em que prefere se afastar do conceito da “realidade falsa” imortalizada por essa relação social e buscar um significado mais concreto do significado da vida.

Enquanto Emerald (Palmer), também envolvida pelas promessas vazias da espetacularização, luta para manter o negócio da família – cuja associação à história do cinema faz referências à temática analisada -, ela vai se desvencilhando aos poucos do que parece lhe causar um mal inexplicável e uma sensação crescente de fuga. Afinal, nos primeiros atos, vemos que Em é uma mulher com plena certeza do que quer para seu futuro e, por essa razão, não pode se limitar à realidade do pai e do irmão – ainda mais considerando que seus planos vão muito além da criação de cavalos e do contentamento com o bucólico. Eventualmente (e dentro de uma perspectiva um tanto quanto pessimista), suas investidas mais promissoras a levam de volta para o início, num vicioso ciclo de negação e frustração que a prende no mais remoto passado.

Algo similar acontece a Angel Torres (Brandon Perea) e a Antlers Host (Michael Wincott), cada qual com sua jornada internalizada no espetáculo e ambos nutrindo de similaridades gritantes. Angel, que trabalha em uma das múltiplas franquias da extinta Fry’s Electronics, resolve se apropriar do direito de “cuidar” das câmeras que instalou na fazenda de OJ e de Em e, quando o extraterrestre começa a dar as caras, imediatamente entre em seu carro e corre para lá para observar de perto; ora, ele até mesmo pede para que Em tire um louva-a-deus que está bloqueando uma das lentes e impedindo sua experiência completa. Antlers, por sua vez, é a materialização da espetacularização, visto que trabalha no cenário audiovisual e sabe os meandros para capturar imagens do OVNI e divulgar sua presença para o mundo.

Há um outro tema que toma forma no decorrer do filme, associando-se à sociedade do espetáculo e ao personagem vivido por Steven Yeun, Jupe: o da exploração. Quando mais novo, Jupe participou de uma ambiciosa sitcom intitulada ‘Gordy’s Home’ e que trazia como protagonista um macaco. Entretanto, como vemos em algumas sequências, a suspensão quase imediata da série ocorreu depois de um trágico incidente em que um balão que estourou culminou num vórtice de ira de Gordy e no subsequente assassinato de dois membros do elenco. Essa raiva descontrolada é uma espécie de resposta ao subjugo sofrido pelo animal, como resposta à constante exploração que sofria, encarcerado em uma situação de servidão obrigatória. E o evento, que ficou marcado no imaginário popular, tornou-se uma lenda urbana e integrou o que se enxerga como passividade mnemônica da espetacularização.

Essa memória é inclusive abraçada por Jupe, agora mais velho e dono de um parque de diversão: em seu escritório, é possível ver um token, um memento do que viveu quando mais jovem e um símbolo do que ele enfrentou no passado (talvez tendo se curado, talvez alimentando um trauma que não tem para onde escapar). Tudo indica que Jupe não aprendeu com os erros de outrem, utilizando a presença do alienígena como atração principal de seu parque e colhendo os frutos da exploração desmedida e da defesa do espetáculo como fonte de renda – ou seja, ele e o público de seu show são brutalmente mortos.

Debord caracteriza o movimento essencial do espetáculo como a ingestão de “tudo o que existe na atividade humana em estado fluido para depois vomitá-lo em estado coagulado, para que as coisas assumam seu valor exclusivamente pela formulação em negativo do valor vivido” – e tal máxima é adotada por Peele em sua própria definição que não é redundante, mas beira a literalidade: o OVNI, que é construído como antagonista, suga toda a vida que encontra pela frente e que ousa olhá-lo como se fosse mais um objeto, nutrindo-se do que precisa para depois regurgitar o que não tem mais valor (o estado coagulado analisado pelo autor).

Lembrando que ‘Não! Não Olhe!’ continua em exibição nos cinemas nacionais.

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Thiago Nollahttps://www.editoraviseu.com.br/a-pedra-negra-prod.html
Em contato com as artes em geral desde muito cedo, Thiago Nolla é jornalista, escritor e drag queen nas horas vagas. Trabalha com cultura pop desde 2015 e é uma enciclopédia ambulante sobre divas pop (principalmente sobre suas musas, Lady Gaga e Beyoncé). Ele também é apaixonado por vinho, literatura e jogar conversa fora.

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