Freddy Krueger é um antagonista slasher que dispensa grandes apresentações. Você, leitor, pode até não ter assistido aos filmes, mas provavelmente sabe quem é o maníaco que assassina jovens incautos no mundo dos sonhos. Dirigido e roteirizado por Wes Craven em 1984, o personagem surgiu quando Michael Myers havia dado um intervalo em sua matança e Jason Voorhees começava a apresentar alguns sinais de cansaço. Com longa estrada na cultura pop desde que surgiu pela primeira vez, o humorado e irônico vilão das garras afiadas, trajado com sua blusa de listras vermelhas e verdes, juntamente com seu inconfundível chapéu, assustou plateias no mundo inteiro e serviu de referência para diálogos metalinguísticos em diversos filmes desde os anos 1980, desde breves menções, como Transformers e Deadpool, às ilações no primeiro episódios da franquia Pânico, além da presença em episódios de Looney Tunes, Todo Mundo Odeia o Chris, Doug, Turma da Mônica, The Simpsons, dentre muitas outras narrativas.
O que faz deste vilão um personagem com legado tão extenso? Para quem conhece A Hora do Pesadelo, a resposta não é complexa. Freddy Krueger é um ícone sobrevivente na cultura pop, âmbito de produção que descarta tão rápido quanto constrói coisas. Isso porque é forte, apresenta diálogos humorados, mas repleto de elementos filosóficos, permite reflexões em torno de suas origens, dentre outras questões em torno da estrutura narrativa que o inseriu na história relativamente recente do cinema. Além de ser forte enquanto personagem, Freddy Krueger foi concebido pelo excelente trabalho de maquiagem da equipe de Kathryn Fenton, setor que ganhou visual mais impactante com os figurinos de Dana Lyman e elementos do design de produção de Gregg Fonseca, todos captados pela direção de fotografia de Jacques Haitkin, eficiente nas cenas de perseguição, adequada nos ângulos que apresentam o antagonista em posição de poder, além da iluminação ideal para passagens soturnas e ambivalentes.
Robert Englund, no papel que definiu a sua carreira, é também um dos responsáveis por tornar o personagem memorável. Eis o enredo: um grupo de amigos assombrados pelo mesmo monstro. Nancy (Heather Langenkamp), Tina (Amanda Wyss), Rod (Nick Corri) e Glen (Johnny Depp) descobrem que dividem o mesmo pesadelo todas as noites, perseguidos por uma figura sombria trajada da maneira descrita anteriormente. É uma imagem desagradável, assustadora com a pele queimada e garras com lâminas afiadas e ameaçadoras. Depois de investigar e buscar diálogo, descobrem que o seu nome é Freddy Krueger. As coincidências começam a se conectar, numa assustadora trajetória de sangue quando percebem que a presença monstruosa é parte de uma vingança sobrenatural que promete um rastro de horror sem precedentes em Springwood. Nancy, mais astuta que os demais pertencentes do ciclo, percebe que os adultos escondem um segredo obscuro sobre o assunto quando o nome do “monstro” é mencionado.
Em camadas que se revelam aos poucos, somos informados que Freddy Krueger foi liberado pela justiça corrupta da cidade, incapaz de dar ao ceifador de crianças o final que os pais de muitas vítimas desejavam. Assim, os justiceiros decidem, eles mesmos, coibirem as futuras ações de um homem transtornado mentalmente. É quando Freddy, impedido de seguir adiante, é queimado vivo, deixando esta vida para se tornar a demoníaca entidade habitante dos pesadelos dos jovens incitados em descobrir os segredos por debaixo do tapete daquela cidade. Ao passo que Freddy é revelado, começa a ganhar mais força e liberdade para habitar as zonas da realidade. Destruir esse monstro acompanhado de diálogos sádicos e repleto de trocadilhos será o trabalho de Nancy, uma das melhores final girl dos anos 1980.
Em seu rastro de sangue e pavor, Freddy Krueger protagoniza cenas marcantes, tais como o assassinato de Tina, arrastada pelas paredes repletas de sangue, a descida de Glenn pela cama que o suga e depois, expele jarros frenéticos de sangue para todo lado, além da famosa perseguição da abertura, com o antagonista e seus braços enormes. Memorável também são as garras de Krueger na parede do quarto de Nancy, cena retomada na primeira temporada de Stranger Things num acertado tom metalinguístico. São passagens que tangem aos elementos estéticos de A Hora do Pesadelo, filme que só envelheceu diante dos efeitos visuais, mas é algo que não impacta em seus aspectos dramáticos bem concebidos por Wes Craven no auge do seu talento enquanto cineasta e dramaturgo, realizador “autor”, consciente dos desdobramentos de todos os setores de produção de seu filme.
Charles Bernstein, responsável pela trilha sonora, edifica de maneira eficiente a música que acompanha os personagens, composição que muita gente, ainda hoje, acha arrepiante, em especial, a canção de ninar, tão inesquecível quanto os arranjos de John Carpenter para Halloween – A Noite do Terror, conduções musicais memoráveis na seara dos filmes slasher. São poucas notas, mas a quantidade eficiente para se tornar o tema principal de toda a franquia, melodia arrepiante que dialoga com a imagem de Krueger, fortalecida mais adiante, durante e depois do término do filme, cristalizado para sempre em nosso imaginário. Ainda sobre tópicos sonoros, importante também o trabalho envolvente da equipe de Jess Soraci no design de som, parte da equipe técnica importante no desenvolvimento de um filme de terror.
Para a concepção de A Hora do Pesadelo, Wes Craven contou que emulou muitos elementos da sua vida, em especial, os seus medos de infância. Em texto de apresentação para o livro Never Sleep Again, de Thommy Huston, crítica genética bastante elucidativa do clássico slasher, o cineasta conta que tinha muitos pesadelos quando era criança. Ele sempre questionava a sua mãe sobre a possibilidade de acompanha-lo nos sonhos e assim, ajuda-lo a resolver os conflitos desta seara assustadora de suas noites de sono. Objetiva e gentil, a sua mãe disse que “o sonho era o único lugar onde nós só podemos ir sozinhos”. Foi um momento amedrontador, mas fundamental para que nós, cinéfilos, ganhássemos anos depois, o filme com Freddy Krueger. Da janela do seu quarto que tinha vista para a rua onde um homem misterioso o assustou certa noite, ao se aproximar do vidro e olhar fixamente para Craven, enquanto tentava dormir, e os estudos sobre psicologia e sonhos, realizados durante a época de faculdade, a semente de Krueger atravessou um longo processo de germinação, por isso fixou-se tão bem quando teve a oportunidade de ganhar “vida” dentro da lógica mágica cinematográfica.
Ademais, ao longo de seus 91 minutos, A Hora do Pesadelo flerta com a ambivalência de seu desfecho que permite interpretações múltiplas. Teria sido um pesadelo coletivo de todas as pessoas da cidade, em especial, de Elm Street, reduto da classe média local e seus receios e inseguranças? Diferente de Jason, Michael ou qualquer outro assassino slasher, Freddy ataca as pessoas em seus pesadelos, algo mais difícil de escapar, pois tal como sabemos, não podemos comandar todos os aspectos desse ambiente onírico. Você, caro leitor, já deve ter tido um desses sonhos ruins, despencando de uma altura aterrorizante ou tendo que lidar com uma situação abominável, fora de seu controle, digamos, racional, não é mesmo? É com isso que A Hora do Pesadelo trabalha, um conjunto de conflitos estabelecidos diante de situações que muitas vezes fogem do nosso controle, matéria-prima básica para o desenvolvimento dramático que nos envolve e faz refletir e temer.
Vamos agora analisar o filme em pormenores. Preparados?
Na abertura deste slasher inovador, a equipe de Wes Craven destaca o modo de operação de Freddy Krueger na concepção de sua imagem aterrorizante. Um suéter de duas cores contrastantes, isto é, verde e vermelho, escolhidas cuidadosamente para os efeitos semióticos pretendidos pela narrativa e a confecção da icônica luva com garras afiadas, idealizada para destroçar, nos pesadelos, e, concomitantemente, na realidade, os jovens incautos de A Hora do Pesadelo. Design de som, trilha sonora e design de produção trabalham assertivamente para compor os elementos visuais atmosféricos que predominam ao longo de todo o filme.
Em seu primeiro encontro com Freddy Krueger, Tina atravessa uma aterrorizante jornada com muito uso de efeitos especiais, direção de fotografia com iluminação soturna e design de som que evidencia o perigo representado pelo antagonista dos pesadelos. Na esteira do legado de A Hora do Pesadelo, esta é uma das passagens mais emblemáticas e recorrentes quando o filme é referenciado na cultura pop.
Logo após o seu “amargo pesadelo” de Tina, acompanhamos uma passagem com atmosfera ainda onírica, nebulosa, na rua onde Freddy Krueger vai tornar a existência dos jovens da narrativa num pesadelo constante. As crianças que brincam de pular corda entoam a emblemática música tema, numa contagem numérica aterrorizante, responsável por reforçar os horrores do antagonista no passado e o seu retorno para o tempo presente. No carro vermelho, referência direta ao monstro das garras afiadas e ao seu caminho de sangue, os personagens incautos se apresentam para o espectador, vítimas de um pesadelo que parecerá não ter fim.
Num encontro entre os jovens para assistir filmes e comer pipoca, eles compartilham as coincidências em torno do mesmo pesadelo nas últimas noites. Cada um descreve Fredy Krueger e a similaridade das situações oníricas despertará a curiosidade de Heather, uma final girl com faro investigativo. Na sequência seguinte, um dos momentos de contato entre o antagonista e Heather, passagem também bastante referenciada na cultura pop.
Apesar de alguns efeitos especiais não surtirem o mesmo efeito da época, 1984, A Hora do Pesadelo traz sequências icônicas que tal como já mencionado, ganharam versões metalinguísticas em outros filmes, séries, videoclipes, etc. A cena em questão é parte do pesadelo de Tina, momento em que sua vida é aniquilada pelo antagonista com garras afiadas e mortais. Mais adiante, o design de som delineia o quão sádico é Freddy Krueger, figura que traça faíscas com suas garras e não poupa ninguém quando o assunto é o estabelecimento de sua vingança contra os jovens de Elm Street, algo devidamente explicado no desfecho.
Outra passagem memorável: Freddy Krueger ataca Tina e o seu namorado é quem leva a culpa pelo crime sangrento. Arrastada pelas paredes do quarto, a cena foi uma das mais trabalhosas para Wes Craven e teve releitura no assassinato da babá de Dylan, o filho de Heather, no também ótimo O Novo Pesadelo: O Retorno de Freddy Krueger. Inspirada nos efeitos de filmes como O Picolino, com seus cenários móveis e diferenciados, os realizadores de A Hora do Pesadelo capricharam na concepção e entregaram uma boa cena, ainda muito eficiente para os padrões do público contemporâneo.
Nesta sequência, proposital ou não, a caminhada de Nancy se assemelha ao trilhar de Jamie Lee Curtis como Laurie Strode em Halloween: A Noite do Terror, de 1978, clássico de John Carpenter que ganhou ressonâncias na onda slasher dos anos 1980. A moça atravessa a rua tranquila, sem grandes dispersões e barulhos, até encontrar com o namorado de Tina, na posição de fugitivo. Mais adiante, outra sequência de pesadelo, desta vez, na escola. Cena também memorável e bastante reiterada em outros filmes, tais como a refilmagem de 2010 e o turbinado crossover de Freddy Krueger com Jason Vorhees, de Sexta-Feira 13.
A famosa sequência do pesadelo na escola continua, com o cadáver de Tina ensanguentado, para o horror de Nancy. Na sala de aula, a perspectiva dos realizadores nos remete, mais uma vez, ao clássico momento de Jamie Lee Curtis também estudando, enquanto Michael Myers espreita do lado de fora. São construções estruturais diferentes, mas com mesma perspectiva.
Duas passagens também emblemáticas: o banho de Nancy, ameaçada pela presença de Freddy Krueger em sua banheira, e a angustiante subida pelas escadas, momento em que o antagonista estabelece uma série de peripécias para a garota enfrentar, trechos que se aproxima do final apoteótico e dinâmico. Nas passagens exclusivamente oníricas, a direção de fotografia capricha no uso da luz azul, tendo em vista buscar o efeito imersivo desejado.
A hora da verdade: Nancy sonha durante um exame e nesta dinâmica, traz o chapéu de Freddy Krueger para a realidade. Mais adiante, a sua mãe alcoólatra expõe a verdade para a filha: Freddy foi morto no passado, acusado de ter abusado dos jovens desta rua. Agora, sublimados pelos acontecimentos recalcados na mente, o grupo precisará se articular para sobreviver, algo que, no entanto, já não é mais viável para dois deles, aniquilados impiedosamente por Freddy.
Interessante observar como A Hora do Pesadelo possui um manancial de cenas icônicas. Nestas passagens, temos um ataque de Freddy Krueger pelo telefone, tentativa de manter Nancy constantemente aterrorizada e, mais adiante, o momento em que o namorado da garota, interpretado por Johnny Depp, é sugado pela cama, numa das melhores passagens da produção.
Como uma boa protagonista, Nancy percebe que precisará enfrentar de uma vez por todas o seu maior pesadelo. Para isso, prepara o campo de batalha e produz as suas próprias armadilhas, mantendo-se distante do comum na narrativa slasher, filmes que em geral, a mocinha depende do homem para salvar a si e aos demais. Com atmosfera que mescla sonho e realidade, a direção de fotografia trabalha assertivamente na composição da luz, um dos trunfos do filme.
Deitada na cama, Nancy espera o antagonista aparecer em seus pesadelos, para assim trazê-lo para a realidade e eliminar de uma vez por todas o seu reinado de horror. Adiante, após uma angustiante sequência de batalha e perseguição, Nancy organiza o fim de seu algoz com o elemento que mais o aterroriza: o fogo. Freddy Krueger aparentemente é aniquilado, mas uma passagem final, aparentemente pesadelo, indica que as coisas não se encerraram tão fácil. O psicopata onírico retornaria, tantas vezes, em filmes sofríveis, até reencontrar o seu criador em 1994, no metalinguístico O Novo Pesadelo: O Retorno de Freddy Krueger, a ser analisado em pormenores na próxima edição.